Dois montanhistas desafiam o Pico Sem Nome

Atualizado em 20 de abril de 2016
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Enquanto milhões de pessoas comemoraram o Natal e o reveillon com uma bela ceia familiar ou pulando sete ondinhas no litoral, o casal de montanhistas e documentaristas Márcio Bortolusso e Fernanda Lupo decidiu abrir mão dos presentes e iniciar 2009 de uma forma um tanto inusitada, melhor dizendo radical.

Passaram mais de dez dias enfurnados nas montanhas em busca de um objetivo um tanto incompreensível para muitos, isolados da civilização, pendurados a centenas de metros do solo, acordando cedo diariamente para carregar arduamente mochilas com até 45 kg, por entre labirintos de espinhos e caminhos perigosos.

De 23 de dezembro passado à 2 de janeiro deste ano, cada um deles chegou a emagrecer 3 quilos, sem falar nas queimaduras de taturana, picadas de aranha, cortes de facão, centenas de hematomas e escoriações espalhadas por seus corpos e de serem surpreendidos na parede por um forte temporal acompanhado por uma perigosa tempestade de raios.

Montanhistas experientes, além da idéia de passar um reveillon diferente – na montanha, fazendo o que gostam e ao lado da pessoa amada – o casal resolveu encarar um grande desafio nunca antes realizado, escalar a impressionante Face Oeste do pico mais isolado do Maciço dos Marins, uma das mais altas cadeias de montanhas do Brasil, localizada em plena Serra da Mantiqueira, na divisa dos estados de São Paulo e Minas Gerais.

Com 2.421 metros de altitude, o conjunto principal do Maciço dos Marins é formado por três pontiagudos cumes de pedra, sendo que apenas o Pico Principal é acessado pelos montanhistas, após uma exaustiva escalaminhada de várias horas por sua face menos vertical. Um grande vale formado por cânions de pedra e densa vegetação separa este cume de seus dois vizinhos, o Central e o Pico Sem Nome, o mais isolado de todos e o objetivo desta dupla de aventureiros.

Marido e mulher e sócios na Photoverde Produções ( produtora especializada em documentários de Aventura, Natureza e Cultura Regional), o casal decidiu pelo Pico Sem Nome justamente por ser um dos maiores desafios de todo o Maciço, considerado como uma das áreas mais duras para se escalar no Brasil, pelo difícil acesso e grandiosidade de suas paredes rochosas.

“Abrir uma rota nesta região só se compara a escalar em locais como Serra dos Órgãos (RJ) e Maciço do Marumbi (PR), pela dificuldade de aproximação, clima severo e imponência de suas enormes paredes”, diz Bortolusso.

Em 2003, Bortolusso e seu companheiro Chander Cristian foram os primeiros a escalar uma das montanhas do Maciço. Após 14 horas transportando 140 quilos de equipamentos, levaram 10 dias para vencer a imponente Face Leste do Pico Principal, dormindo pendurados por 7 dias, sofrendo com temperaturas negativas que chegaram a congelar o orvalho noturno, com as dores de suas mãos destruídas pelas fendas e martelos, com fome, sede, solidão e risco constante.

Com base na experiência anterior, Márcio e Fernanda planejaram a logística desta nova expedição. Arriscando escalar no verão, época chuvosa que torna este tipo de escalada bastante complicada, sofreram com duras condições climáticas – o município de Piquete, onde se localiza a montanha, entrou em estado de alerta devido às fortes e frequentes chuvas, que causaram muitos estragos e deixaram muitos desabrigados na região.

Além disso, ao invés de buscar o caminho mais fácil, com maiores garantias de se chegar ao topo da montanha, optaram por uma rota mais difícil, mais extensa e vertical. “Não importa chegar, mas como chegar ao cume”, garante a dupla.

A primeira etapa da expedição durou 11 árduos dias. Somente para alcançar a base da montanha, abrindo caminho através de uma densa floresta que se estende por um profundo vale de encostas íngremes, por um labirinto que esconde inúmeras gretas perigosas, foram mais de 40 horas enfrentando espinhos e capim cortante, transportando como mulas de carga cerca de 110 quilos de equipamentos e mantimentos.

Fora os riscos inerentes deste tipo de escalada – onde nenhum outro escalador passou e sem qualquer garantias de cume – não existiam grampos fixos na rocha, croqui com infos sobre as dificuldades da rota ou sobre quais equipos eram necessários e o casal ainda tinha que desviar com cuidado de perigosos blocos soltos (alguns do tamanho de geladeiras). A dupla contou apenas com muita experiência e determinação.

A se destacar, Fernanda é uma das poucas escaladoras que se dedica a abrir vias de escalada. Ao invés de “repetir” uma rota, prefere explorar onde ninguém escalou, realizando o árduo trabalho de fixar as proteções na rocha à base de marretadas, sem direito à vaidades (dias sem banho ou cosméticos), no limite técnico, físico e psicológico de um ser humano. Ainda mais impressionante, reveza a dianteira da

escalada com o seu marido, função encarada apenas pelos escaladores mais experientes. Durante a escalada do Pico Sem Nome,  chegou a fixar proteções na rocha com distâncias de até 12 metros, que poderiam gerar perigosas quedas de até 30 metros caso cometesse algum erro. Uma agarra quebrou em sua mão e ela quase caiu ao escorregar em outro momento, mas felizmente não chegou a cair – cena filmada por uma câmera presa ao capacete de seu preocupado companheiro.

Para ganhar tempo, Márcio também abusou da experiência e chegou a fixar proteções a 20 metros umas das outras, correndo o risco de sofrer quedas perigosíssimas de até 50 metros.

A dupla sempre prefere trabalhar com a “auto-suficiência”, evitando contar em caso de emergência com a boa vontade dos grupos de salvamento locais, que na grande maioria das vezes não possui experiência e equipamentos para atuar em montanhismo. Desta vez, a dupla teve o suporte de uma equipe de apoio formada por montanhistas experientes. No Acampamento Base Marins, local de partida, contaram com o apoio do guia Milton Gouveia e do escalador Diego Moreira, do CEMAR, sempre atentos aos rádios, além do suporte logístico do Gustavo Vidal.  O casal contou com um kit de sobrevivência e um rastreador satelital SPOT , capaz de enviar mensagens com sua exata localização para a equipe de apoio.

Mesmo chovendo em 9 dos 11 dias em que estiveram na montanha, Márcio e Fernanda ascenderam bastante nas poucas brechas sem chuva, chegando inclusive a instalar um Acampamento Avançado a mais de 100 metros do solo para passarem o reveillon pendurados em seu portaledge (maca-cama feita de tubos, lona e fitas).

No entanto, poucas horas antes de encerrar o dia 31, a dupla foi surpreendida por um temporal (tão forte que acharam que fosse granizo) acompanhado por uma tempestade de raios, que estouravam sob suas cabeças. Cientes do risco que corriam e do quanto deveriam ser rápidos (centenas são as fatalidades nas montanhas por descargas elétricas), a dupla abandonou a parede o mais rápido que foi possível, levando uma hora para descer, sob frio e fome, com cargueiras pesadas e abandonando muito equipo na parede (que só foi resgatado no outro dia).

Já no seguro e elevado Acampamento Base (instalado aos pés da parede rochosa a cerca de 2.000m de altitude), a dupla passou um dos melhores reveillons de sua vida, bebendo um mini champagne, assistindo uma tímida chuva de fogos a dezenas de quilômetros. A dupla conta com o patrocínio da norte-americana W. L. GORE®, líder mundial em tecnologias para Atividades ao Ar Livre e detentora das marcas WINDSTOPPER® e GORE-TEX®.

A dupla já está pronta para retornar para a montanha, aguardando apenas uma janela de tempo bom para finalizar a escalada. Normalmente este tipo de expedição pode levar desde uma semana até mesmo exigir várias investidas para ser finalizada – só para ter uma idéia, Bortolusso já precisou de até 6 anos para terminar algumas escaladas.