Maratona da China: o retorno à grande muralha

Atualizado em 28 de julho de 2017
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Sol forte e céu azul, aberto, encheram de alegria e entusiasmo o dia em que me reencontrei com a Grande Muralha da China. Bem diferente de nosso primeiro contato, sob brumas frias, há mais de uma dúzia de anos. Daquela vez eu chegava tenso, temeroso do que iria encontrar: uma corrida por obra milenar, semidestruída, recomposta em alguns trechos apenas, eivada de degraus irregulares, traiçoeiros – a Maratona da Muralha da China! 

Naquela época, em maio de 2004, eu me sentia como um pioneiro, desbravador bandeirante gaudério. Não sem razão, pois era o único brasileiro presente na maratona, segundo me informaram os organizadores. E, a julgar pelos registros das provas anteriores disponíveis na internet, provavelmente era o primeiro a enfrentar o Dragão – um dos apelidos que os chineses dão à obra de quase 3 mil anos. 

Agora, não. O outono chinês do ano passado, por onde eu andasse ouvia alguém falando português. Nas regiões turísticas, numa área próxima a Pequim, a presença da turma verde-amarela era marcante. 

Na dúzia de anos passada desde o primeiro encontro naquela Maratona da Muralha da China, as corridas, a China e a própria muralha mudaram muito. No início do século, a única maratona da Grande Muralha da China – ou, pelo menos, a única que disponibilizava informações para estrangeiros – era a realizada na passagem de Huangyaguan, em Tianjin, a mais de duas horas e meia de ônibus da capital chinesa. Não era tarefa fácil. 

Para participar, era obrigatório comprar um pacote turístico e, se quisesse fazer negócio diretamente, era obrigado a realizar transações financeiras complicadas, aceitando taxas exorbitantes.

É um dos tantos indícios das mudanças ocorridas na China que, de lá para cá, sediou uma Olimpíada e se transformou na segunda maior economia do planeta.

Para usar apenas um indicador, basta lembrar que, em 2004, quando fiz a Maratona da Muralha da China, o produto interno bruto do país totalizava US$ 1,9 trilhão. No ano passado, o PIB atingiu nada menos do que US$ 10,4 trilhões.

Parte das receitas vem do turismo, especialmente das movimentações internas, mas também de um crescente número de visitantes estrangeiros. Por isso mesmo há um grande cuidado com as áreas turísticas. Em relação à Grande Muralha, por exemplo, há vários trechos recuperados, reformados e abertos à visitação. O que mais recebe turistas é exatamente o de Badaling, que visitei agora e que fica a cerca de 80 km a noroeste de Pequim.

MARATONA DA MURALHA DA CHINA
A área de Badaling está arrumadíssima, com lojinhas para turistas, restaurantes, lojas mais “sérias” e vários quilômetros de muralha. Mesmo caminhando como turista, dá para sentir a dureza do percurso — para vencer alguns trechos mais inclinados é preciso o apoio de corrimão.

Esse trecho é bem mais moderno, digamos assim, do que a região em que corri a maratona. Foi construído a partir de 1500, na dinastia Ming. Em comparação, o trecho de Huangyaguan — o mais longo restaurado, com mais de 40 km recuperados — começou a ser erguido cerca de mil anos antes, na dinastia Qi.

Esse mergulho na história, não só da China, mas da própria humanidade, é talvez a principal atração da Maratona da Muralha da China. A gigantesca obra foi construída por milhões de trabalhadores ao longo de séculos. A pré-história da fortaleza data da Era da Primavera e do Outono (de 770 a.C. a 470 a.C.), quando senhores da guerra começaram a erguer fortificações de proteção de suas regiões, mas sem ligação entre si.

A integração das grandes edificações começou em 221 a.C., sob o reinado de Qin Shi Huang, o Primeiro Imperador, responsável pelo primeiro governo central a dominar toda a China. De seu nome, aliás, é que deriva o nome do país. Ele queria construir um paredão de defesa contra as invasões dos bárbaros do Norte, os hunos, para manter protegido o país e garantir estabilidade para seus sucessores.

Mas o próprio processo de construção, com trabalhos forçados, foi um dos fatores que provocou a revolta dos camponeses, que acabaram destruindo a dinastia depois da morte de Qin, em 210 a.C. A dinastia que se seguiu, Han, também investiu na muralha, promovendo reparos e ampliando trechos, expandindo a obra rumo a oeste até o deserto de Gobi, com a missão de ajudar a proteger os mercadores que seguiam pela Rota da Seda.

A terceira dinastia a ter importante papel na edificação foi a Ming, durando de 1368 a 1644. Foram os maiores construtores, e a maior parte do que vemos hoje na Grande Muralha é herança dos Ming.

No total, a muralha e suas ampliações somam mais de 6 mil km — cerca de 6.400 km ou mais de 12 mil li, antiga unidade de medida chinesa equivalente a cerca de 500 metros. Por isso, a palavra chinesa para a Grande Muralha significa “muralha de 10 mil li”.

Há quem diga que com os tijolos e pedras usados na fortaleza poderia ser construído um paredão de 2,5 metros de altura e 1 metro de largura abraçando a Terra na altura da linha do Equador.

 

 

E tudo isso, uma vez por ano — ou algumas vezes por ano, considerando que hoje há várias maratonas na Grande Muralha da China além da tradicional Maratona da Muralha da China — vira palco de corrida, caminho para que misturemos nosso suor com a história.

DIVERSIDADE
Quando, no início deste século, comecei a pesquisar sobre a existência de corridas na Grande Muralha, só encontrei um resultado, a Great Wall Marathon, organizada por um grupo dinamarquês sob autorização do Ministério de Turismo da China.

Ela existe desde 1999 e vem sendo realizada todos os anos, desde então, com a única exceção de 2003, quando o país foi atingido pela chamada gripe aviária. Na época, organismos internacionais de saúde recomendaram que fossem evitadas viagens à China, no que foram seguidos por governos de vários países, inclusive o Brasil e os Estados Unidos.

A Maratona da Muralha da China voltou em 2004. Na época, cheguei a ouvir comentários sobre a existência de uma prova em outro trecho da muralha, em região mais próxima a Pequim, mas não consegui confirmação.

Com o rapidíssimo desenvolvimento econômico da China e as maiores facilidades para turistas, cresceram também as opções de corridas na muralha.

Hoje, há maratonas em diversos trechos da Grande Muralha da China. Além da prova mais antiga, a Maratona da Muralha da China, realizada na chamada passagem Huangyaguan, em Tianjin, pelo menos mais quatro tiveram como palco a Grande Muralha no ano passado, segundo o site Travel China Guide.

A que parece ser a segunda mais importante é a realizada na parte antiga do trecho de Badaling. A parte restaurada é provavelmente a área mais visitada da Grande Muralha tanto por causa da infraestrutura que oferece quanto pela proximidade a Pequim e pela facilidade de acesso — há dezenas de tours e também transporte público convencional.

Os nomes se repetem, o que pode deixar as coisas confusas. Essa em Badaling se chama The Great Wall of China Marathon, que chegou ao ano passado à sua edição número 15. Os organizadores previam ainda uma segunda edição no ano, em outubro, na região de Juyongguan.

Mais recente, a Jinshanling Great Wall Marathon teve sua primeira edição em 2013. A caçula da turma é também realizada em uma região relativamente próxima a Pequim e, pela descrição do site, é saborosa, tendo se notabilizado pela fartura no atendimento aos corredores. Chamada simplesmente The Great Wall, acontece no distrito de Huairou.

Apesar das descrições sedutoras do já citado site de turismo, não consegui encontrar com facilidade as páginas de algumas dessas provas. Claro que a Great Wall Marathon em Tianjin tem o melhor site, o mais completo e de mais fácil navegação: great-wall marathon.com.

Também não foi complicado encontrar o endereço virtual da prova de Badaling: www.great-wall-marathon.com .O desenho dessa página parece menos profissional, é tudo mais bagunçado — o que não quer dizer que isso venha a ocorrer também na prova. Tive mais dificuldade para navegar nesse site, mas acabei encontrando as informações básicas para inscrição e contato com os organizadores.

Esse site serve como porta de acesso para outras maratonas na Grande Muralha da China. Mas é preciso gastar um tempo para entender os caminhos virtuais. Em contrapartida, a página da corrida na área de Jinshanling é bem editada e tem todas as informações em ordem facilmente compreensível: www.runchinamarathon.com/event/detail/2/1.

Vale reforçar que um site bonitaço não significa uma prova bem organizada, e o contrário também é verdadeiro. As páginas que citei aqui servem como pistas para novas pesquisas. Imagino que os serviços internéticos das corridas na China devem continuar melhorando.

PELAS ESCADARIAS
Ver as fotos da maratona na Grande Muralha assusta qualquer um, especialmente acostumados a rodar apenas no asfalto. Apesar disso, o treinamento para a Maratona da Muralha da China não é um bicho de sete cabeças — eu mesmo me preparei por conta própria. Mas não foi um processo solitário.

Tive oportunidade de discutir a preparação para a Maratona da Muralha da China com o experiente técnico Marco Antônio de Oliveira, o Marcão, especialista em treinamento para longuíssimas distâncias. Também contei com a orientação do ortopedista Wagner Castropil, que ajudou a impedir que eu fizesse muita besteira.

O principal problema de quem treina sozinho é a insegurança. A gente nunca sabe se está fazendo o suficiente e tende a se cobrar mais, a criar percursos mais longos: acaba pecando pelo excesso e tende a ter mais risco de se machucar.

Quando me preparei para a Maratona da Muralha da China, já tinha alguma experiência em maratonas e ultramaratonas curtas (50 e 56 km). Além disso, nos anos anteriores havia tido orientação de bons treinadores, o que também me deu uma boa base para pensar e organizar meus treinos. Busquei dicas na internet, li depoimentos de pessoas que haviam participado da corrida e acompanhei as orientações propostas pela página oficial da prova. Mas a responsabilidade final foi minha.

O esqueleto do treinamento é o mesmo de uma maratona convencional. Três semanas de aumento de volume, uma de redução de quilometragem total, para aumentar no bloco seguinte de três semanas de alta. Alternei esses blocos “três por uma” com “duas por uma”, para ter mais descanso. Também cuidei de nunca aumentar a quilometragem semanal mais de 10% de uma semana a outra.

O grande diferencial foi a inclusão de escadas e o modo de treinar nas escadarias. Também construí circuitos tentando imitar Também construí circuitos tentando imitar os grandes blocos de dificuldade da corrida

A Maratona da Muralha da China tem vários estágios. Sobem se cerca de 5 km por asfalto até a entrada da muralha, correm-se cerca de 2,5 km sobre a muralha, desce-se cerca de 1,5 km por trilha abrupta montanha abaixo, rodam-se cerca de 20 km por asfalto e terra e aí retorna-se para a muralha no sentido inverso, subindo pela trilha, entrando na muralha e descendo pelo asfalto.

A chamada “segunda entrada” é aproximadamente na altura do km 34. Então botei na cabeça que a corrida começa no km 34, que eu tinha de estar preparado, com energia e força para meter bronca quando tudo parecesse quase destruído. Assim, pelo menos uma vez por semana fazia treinos em que rodava de 3 a 5 km até chegar a uma escadaria — por exemplo, as da Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu.

Ali são cinco escadarias, de diferentes tamanhos. Fazia circuitos por elas, subindo e descendo as cinco, ou apenas subindo as mais compridas, dependendo do dia e da vontade. Depois rodava mais uns 5 ou 6 km até chegar a outra área de escadarias, fazia outro sobe e desce e completava o treino com mais uns 5 km de rodagem.

Outra versão do treino era a inclusão de subidas fortes separadas por longos intervalos. Num treino de cerca de 30 km, incluía, por exemplo, a subida e a descida da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, depois rodagem pelos Jardins, travessia da Marginal Pinheiros e subida até o Palácio do Governo, nos altos do Morumbi.

Os treinos nas escadarias eram sempre diferentes. Não se tratava apenas de subir e descer degraus. Precisava me acostumar a não ter ritmo — afinal, mesmo nas áreas restauradas, os degraus da muralha é extremamente irregular.

Por isso, eu combinava subidas de dois em dois degraus, de três em três, de um em um, variando sempre para não me acostumar com o desafio. Também fiz alguns treinos subindo e descendo escadas curtas de costas, apenas para treinar concentração e equilíbrio.

Cada cidade tem seu local específico, especial de treinamento. Fiz jornadas sensacionais no Pico do Jaraguá, que combina subida desafiadora, escadarias e trilha. Eu subia correndo os 4,5 km de asfalto e, chegando ao alto, enfrentava repetidas vezes os 250 degraus até o topo da escadaria que fica no cume do Jaraguá (cheguei a fazer cinco repetições, com um total de 2.500 degraus).

A descida eu fazia pela Trilha do Pai Zé, com muito cuidado, mas arriscando alguns trotinhos. Era mágico!

Em contrapartida, um treino chato, mas recomendado, envolvia escadarias de edifícios. Pode ser útil para quem não tenha muitas subidas e descidas na cidade.

Corria uns 3 km pela rua e depois chegava ao meu prédio, um edifício de 28 andares, e fazia uma ou duas subidas e descidas das escadarias, sempre bem devagar e com muito cuidado na descida. Depois rodava mais uns 5 km, voltava e repetia a brincadeira.

O principal, para mim, era montar treinos que buscassem reproduzir as dificuldades que eu encontraria. Funcionaram para mim, o que não significa que funcionem para outras pessoas: cada corredor tem sua história, seus problemas.

O ideal é que cada um tenha orientação individual, especializada, de um treinador experiente, além de acompanhamento médico. Mas nem sempre a gente pode trabalhar com o ideal.