Maratona da Esperança: conheça a história de Terry Fox

Atualizado em 29 de novembro de 2016
Mais em Experts

Foi um piscar de olhos: bum! As obras da ponte sobre o rio Coquitlan já se arrastavam havia algum tempo e ainda atraíam as atenções de motoristas na autoestrada Lougheed. Dirigindo seu Ford Cortina 1968, o jovem Terrance Stanley, ou Terry Fox, voltou os olhos para a construção. Foi o que bastou. Enfiou seu carrinho na traseira de um caminhãozão de meia tonelada. Perda total.

O motorista, porém, saiu sem nenhum arranhão. Então com 18 anos, Terry Fox nem se abalou com a possível tragédia. Ligou para a mãe, avisando do caso e, mesmo com um pouquinho de dor no joelho direito, pegou um ônibus e seguiu para seu treino como se nada houvesse acontecido. Era 12 de novembro de 1976.

No mês seguinte, Terry voltou a sentir o joelho. Precisava de mais alongamento, pensou ele, e nem falou com seu treinador sobre o problema. Ia passar. Não passou. Em fevereiro de 1977, três meses depois da primeira dor pós-acidente, finalmente foi ao médico. Como pensava, não era  nada – lhe disseram que era resultado de uma reação química, sem informar o que havia provocado. Foi medicado com  analgésicos e mandado para casa.

Com os remédios, seguiu sua vida normal. Nos treinos, gostava de exigir sempre um pouco mais do corpo. Mas a dor persistiu. Dia 1º de março, depois de dar  sete voltas na pista de atletismo em uma escolha, Terry mal conseguia caminhar. Chegou em casa mancando, com o joelho inchado.

Recebeu o atendimento doméstico de emergência – banho quente e cama – e, no seguinte, foi examinado por um médico, que aconselhou a ida a um ortopedista. Foi atendido no pronto-socorro do hospital Royal Columbia, em New Westminster e inciou exames.  

O diagnóstico definitivo saiu no dia 4 de março de 1977: câncer. Terry Fox, 18, tinha osteossarama, câncer  nos ossos que atinge principalmente crianças e adolescentes Nessa população, o osteossarcoma se desenvolve normalmente em áreas de crescimento do osso. Cinco dias depois da notícia, Terry enfrentou a cirurgia que amputou sua perna direita, cortada um pouco acima do joelho — os médicos achavam que o tumor estava contido.

Quando acordou, ainda meio sonado e tonto, seu primeiro pensamento foi de desespero. “Como é que vou conseguir andar novamente?”, perguntou a si mesmo, segundo sua biógrafa, Leslie Scrivener. Pois não só andou como realizou um dos maiores feitos esportivos e humanitários da história recente do Canadá — talvez de toda a história daquele país.

Travessia da Esperança
Arrastando sua perna mecânica, Terry planejou, organizou e correu a Maratona da Esperança. O projeto era atravessar o Canadá para arrecadar fundos para pesquisas contra o câncer. Não conseguiu chegar ao fim da empreitada. O câncer voltou, tomou conta de seus pulmões, e matou o garoto de cabelos encaracolados. 

O que fez, porém, arrebatou corações em seu país e no mundo. Foram mais de 5 mil km percorridos em 143 dias, numa demonstração de dedicação, de têmpera de aço e de cabeça dura. “Não sei por que sonhei em fazer o que fiz”, disse ele, segundo registra a biografia Terry Fox – His Story (A história de Terry Fox).

mapa

Ele mesmo dava a resposta. “É porque eu sou competitivo. Adoro desafios. Eu não desisto. Quando decidi fazer a Maratona da Esperança, sabia que iria com tudo. Não ia ter conciliação.”

Mais do que o feito esportivo em si, talvez tenha sido essa demonstração de espírito inquebrantável que emocionou seu país, que homenageia o garoto das mais diversas formas. Há mais de 30 estradas e ruas — sem contar nove trilhas de corrida —, 14 escolas e outros tantos edifícios nomeados em honra do corredor.

 

 

Estátuas de Terry Fox estão espalhadas pelo país. Há três anos, quando corri a maratona de Vancouver, tive oportunidade de conhecer uma das mais recentes, um conjunto de estátuas localizado em uma das principais ruas da cidade, em frente à mais importante arena esportiva do local.

São quatro esculturas de bronze representando Terry Fox em movimento. Cada uma é um pouco maior que a outra — a primeira da fila é gigante. “Fiz isso para representar a crescente popularidade de Fox ao longo da Maratona da Esperança”, disse o escultor Douglas Coupland. Na montagem, as esculturas correm na direção leste, para onde se dirigiu Terry Fox.

A Maratona da Esperança começou no dia 12 de abril de 1980, em um dos pontos mais orientais do Canadá. Até conseguir chegar àquele momento, Terry teve de enfrentar muitas dificuldades — sua preparação física talvez tenha sido a menor delas. Desde pequeno, o filho de Betty e Roland Fox — ela, dona de casa; ele, ferroviário, funcionário da Canadian National Railway — mostrou pendores esportivos.

Compensava sua estatura — com 1,73 metro, era “anão” perto dos gigantes do basquete — com uma determinação impressionante e supermegablaster dedicação aos treinos. Tanto que, no seu último ano de ensino médio, foi escolhido atleta do ano — dividiu as honras com seu amigo Doug Alward, que mais tarde lhe daria suporte ao longo da Maratona da Esperança.

Jogava basquete e praticava corrida (cross country). Exatamente os esportes que o “puxaram” nos primeiros tempos depois da amputação da perna.

Sua recuperação foi impressionante, deixando todos abismados. Experimentou a primeira perna mecânica três semanas após a cirurgia: “No primeiro passo, parecia que eu estava pisando no ar. Parecia que eu estava pisando em nada”.

Trôpego, tratou de se esconder. Em vez de caminhar no corredor da ala do hospital em que estava, foi para o banheiro. Testou dar alguns passos apoiado nas muletas que vinha usando e, aos poucos, ganhou confiança para comandar o membro artificial. Em três semanas já conseguia caminhar o suficiente para participar de partidas de minigolfe; mais outro tanto e foi convidado para participar de partidas de basquete em cadeira de rodas.

Passou a treinar arremessos, trabalhou no fortalecimento de todo o corpo; em cadeira de rodas, subia lombas imensas na cidade… E tratou de começar a correr. Sempre desafiando a si mesmo.

Na primeira corrida em que participou, havia outro atleta com necessidades especiais, de muletas. Terry iria correr 100 metros; Dan, que não tinha as duas pernas, também tentaria cumprir a distância. Apesar de terem problemas diferentes, largaram na mesma bateria. “Quando deram a largada, eu saí correndo o mais rápido que podia, e meu joelho mecânico se quebrou ao meio. Não tinha corrido nem 10 metros, e voei ao chão. Dan passou por mim nas suas muletas, completou os 100 metros em um minuto e meio e ainda disse: ‘Pelo menos eu ganhei do Terry’.”

A luta continua
O fracasso não o derrotou. Ao contrário, aos poucos ganhava corpo a ideia de fazer uma corrida transcanadense para lutar contra o câncer e arrecadar fundos para a pesquisa. Organizou um programa de treino desenvolvido ao longo de um ano — incluindo a participação em uma prova de 27 km, que completou em 3h09min, o que lhe valeu a última colocação.

Ao mesmo tempo, procurava melhorar a prótese — que não chegava nem perto das pernas mecânicas hoje usadas por velocistas e maratonistas amputados. Sofria com bolhas e não poucas vezes as feridas provocadas pela fricção faziam escorrer sangue pelo membro artificial.

A julgar pelo que sua biografia registra, porém, as maiores dificuldades enfrentadas por Fox antes de começar sua jornada foram exatamente com aqueles a quem pretendia beneficiar. Foram tensas suas negociações com a Canadian Cancer Society, que concordou em promover a corrida — ainda que seus dirigentes continuassem duvidando da empreitada.

lucena-2

Com alguns outros apoios — ganhou a van que lhe serviria de base na jornada, recebeu material esportivo e ajuda para gasolina —, enfim se colocou em St. John’s, no leste do Canadá, e encheu duas garrafas com água do oceano Atlântico. Pretendia esvaziá-las 7.250 km depois, no oceano Pacífico, do outro lado do país.

Nos primeiros dias, correu em média uma maratona por dia. Em alguns lugares, era recebido como celebridade; em outros, a recepção era fria e a arrecadação, pequena. Terry começou a se entusiasmar quando já tinha percorrido quase 350 km. Escreveu no seu diário: “Em Gambo as pessoas faziam fila para contribuir, davam notas de 10 dólares, de 20 dólares. Foi quando realmente me dei conta do potencial de minha corrida, da capacidade de arrecadação ilimitada”.

Ele percebeu, mas, pelo que seu diário indica, a Cancer Society nem sempre esteve à altura da empreitada. “Eu precisava que eles preparassem o ambiente previamente, nas cidades aonde eu chegaria; se fizessem isso, os resultados seriam bons. Mas nem sempre faziam a preparação, e era frustrante, não só porque não arrecadávamos tanto quanto seria possível como também porque não atingíamos as pessoas com nossa mensagem — e isso era culpa da Cancer Society.”

Os desencontros parecem ter sido os principais incômodos de Terry — e são surpreendentes, pois, afinal, o garoto de 21 anos estava fazendo um esforço hercúleo para beneficiar a entidade e a pesquisa de tratamentos para o câncer.

Em 10 de maio de 1980, por exemplo, ele escreveu em seu diário: “A Cancer Society de Nova Scotia não está fazendo nada, estamos jogando dinheiro fora”.

Com os quilômetros percorridos, Terry ganhava também experiência no trato com o público, com a imprensa, com as autoridades. Apesar dos embates com a turma da burocracia, estava alcançando aos poucos seu objetivo, sua jornada ganhava reconhecimento até do primeiro-ministro canadense e empolgava a comunidade.

Houve percalços. Em maio, a Maratona da Esperança quase foi abortada por causa de um acidente. Terry corria na rodovia TransCanadá acompanhado por uma equipe da rede CBC de televisão quando um caminhão atingiu o veículo da imprensa. “Se fosse 5 metros à frente, eu teria morrido. Se tivesse ocorrido 30 metros antes, os jornalistas não teriam sobrevivido”, disse Terry. Do jeito que aconteceu, o carro foi destruído, houve alguns feridos, mas nada de mais terrível aconteceu.

Assim pôde continuar. As conversas tímidas agora se transformaram em entrevistas coletivas lotadas, e havia recepções grandiosas em várias localidades aonde ele chegava. Em Scarborough, fez um discurso que conquistou mais apoio para sua causa. “Não estou fazendo isso para ficar rico e famoso. Um dos problemas do mundo é que as pessoas se tornaram gananciosas e egoístas. Para mim, a única coisa que importa é derrotar o câncer.”

Disse também, de forma quase profética: “Mesmo que eu não termine, precisamos que outros continuem essa jornada. Ela deve seguir mesmo sem mim”, afirmou, referindo-se à luta para arrecadar fundos para pesquisas contra o câncer.

E o dia chegou antes do que ele imaginava, mas quando ele já tinha feito muito mais do que qualquer outra pessoa teria imaginado. Com 5.373 km percorridos, foi forçado a parar no dia 1º de setembro de 1980, próximo a Thunder Bay, Ontario. O câncer atingia seus pulmões. Lutou contra a doença por um ano e morreu em junho de 1981, antes de completar 23 anos.

Quando parou, muitos se propuseram a completar sua jornada, a rodar os quase 2.000 km que faltavam para completar a corrida. Ele recusou; queria cumprir o caminho por si mesmo. Mas incentivou que fossem realizados projetos de arrecadação de fundos com os mesmos propósitos de sua generosa empreitada.

A 13 de setembro de 1981, foi realizada a primeira corrida Terry Fox, reunindo 300 mil pessoas em mais de 700 localidades e arrecadando US$ 3,5 milhões. Hoje, a fundação Terry Fox contabiliza corridas em dezenas de países e já arrecadou centenas de milhões de dólares para projetos de combate ao câncer.