Gordinhos: o triunfo do caráter

Atualizado em 01 de julho de 2016

O ser humano é um bicho que só não chama a si mesmo de bicho porque coube a ele inventar as palavras. Somos bichos, sim. E, como todo bicho, temos lá nossas manias e cacoetes. Alguns são particulares, como o sujeito que cutuca a orelha com o mindinho ou o outro que coleciona etiquetas de bagagem de todos os voos que fez na vida. Já outras manias são universais, como a de fazer planos mirabolantes — que no final geram frustração. O bicho corredor não é diferente dos demais bichos da espécie humana e, sendo assim, ele adora sonhar com coisas difíceis ou quase impossíveis.

Querem um exemplo? Garanto que vocês conhecem alguém que começou a correr para perder peso e, dez maratonas depois, continua gordinho. Eu tenho amigos assim e percebi que eles se dividem em dois grupos: os que começaram a correr para emagrecer, não emagreceram e nunca mais correram e os que começaram a correr para emagrecer, não emagreceram e continuaram correndo. A diferença entre os dois é que os do segundo grupo vão viver mais e mais felizes porque entenderam que algumas coisas na vida não podem ser mudadas — ao menos não a um custo aceitável —, e perceberam que é a qualidade de vida e não posar de queniano no escritório o maior benefício da corrida.

O gordinho corredor é o verdadeiro herói — e há dados científicos que provam isso. Outro dia eu vi uma palestra de um preparador físico que mostrava como os quenianos e etíopes têm facilidade para correr. E não é por conta daquela lenda de que os caras correm para fugir de leões. Isso é preconceito, mesmo porque todas as pessoas que tentaram apostar corrida com leões na história perderam solenemente. E olhem que nem estou falando dos guepardos, que correm mais do que um carro popular. Os atletas daquela região da África possuem características físicas, moldadas ao longo de gerações, que os tornam perfeitas máquinas de correr. Pernas longas e desproporcionais ao resto do corpo, tronco esguio, pulmões proporcionalmente grandes, braços finos, panturrilhas quase inexistentes e, portanto, fáceis de serem erguidas a cada passo… e por aí vai.

Pensem num típico corredor queniano. Pensaram? Agora pensem nos gordinhos corredores. Eles não são heroicos? Rir com dente é fácil, como diz um amigo meu. Correr bem, com canelinhas de graveto, nem é um grande feito. Façanha é correr 10 km abaixo de uma hora carregando sobrepeso e panturrilhas portentosas como as de um rinoceronte. Joguem um saco de cimento nas costas do queniano e o mandem correr 10 km em 50 minutos. Duvido que aguente. Mas eu conheço gordinhos que fazem 10 km abaixo de 45 minutos — e já ouvi falar até em maratonistas gordinhos sub-3h!

Eu admiro profundamente os gordinhos que continuam correndo, mesmo sem emagrecer. Eles têm a alma de corredor. Correm contra os próprios limites, contra si mesmos e não por glórias. Correm mesmo sob gritos jocosos dos bocós sedentários nas provas: “Corre, gordinho!”, “Tá magrinho, hein, bolão?!”… Os gordinhos corredores — esses seres grandes de tamanho e imensos de caráter — não ligam para a crueldade do bicho homem. Apenas seguem, passo após passo, rumo à faixa final. Todo o meu respeito a eles, que estão em outro estágio de compreensão da importância do esporte e do valor da determinação. E, talvez exatamente por isso, mereçam ser chamados de homo sapiens.