Corrida além dos limites

Atualizado em 04 de julho de 2016
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A palavra fármaco significa remédio, mas na Grécia ela é a junção de duas palavras — uma que significa “cura” e outra, “veneno”. Os gregos sabem das coisas. Talvez por isso seja deles a sacada genial de juntar a cura e o veneno numa mesma palavra. Porque o que é um remédio senão isso: algo que pode matar ou curar, a depender da dose?

Nós deveríamos entender que tudo, e não apenas os remédios, pode ser a salvação ou a desgraça. Comer é bom; comer demais mata. Trabalhar é bom; trabalhar demais faz mal. Descansar é bom; descansar demais é deprimente. A paixão pela corrida não é diferente. E é a esses apaixonados, mas tão, tão, tão apaixonados por corrida que chegam a ficar loucos que eu queria me dirigir aqui. Se você não chega a ser um corredor em estágio terminal de loucura, ainda assim vale a pena ler este texto, pois ele pode servir tanto para alertar um amigo quanto para identificar sintomas no seu próprio comportamento.

A paixão exacerbada pelas pistas começa de mansinho, de um jeito que a gente nem nota. Um cara que sempre adorou praia e passa a trocar as areias por um longão, por exemplo. Ou uma amiga que passa a gastar 30% do orçamento em tênis e relógios para atletas. Um maluco que constrói e instala um imenso quadro de jacarandá na sala para ostentar todas as medalhas das provas que completou. O sujeito que de cada dez posts feitos nas redes sociais dedica nove para se mostrar em poses heroicas de corredor, como se fosse o Usain Bolt. Os insanos que trocam o horário de almoço, de sono, de descanso e de ficar com a família para treinar, treinar, treinar e… treinar — como se a medalha daquela prova que larga do estacionamento do shopping fosse o ouro da maratona olímpica. E por aí vai. Esses são os sintomas do
estado avançado da doença, que já exigem cuidados muito especiais. Mas a coisa pode se agravar ainda mais.

Já ouvi relatos sobre um executivo que largou esta pérola: “Minha mulher pediu para escolher entre ela e a Maratona de NY. Que pena, ela era uma boa esposa…”. Já uma amiga tarada por corrida certa vez disse o seguinte para uma colega de equipe: “Se você tivesse que escolher entre o seu marido e treinar, o que você faria? Intervalado ou longão?”. Esses casos são os terminais. O próximo passo será deixar a barba crescer (os pelos do sovaco, no caso das mulheres) e ficar atravessando os Estados Unidos, correndo loucamente com um boné da Bubba Gump na cabeça. Run, Forrest, run!

O mais grave disso tudo é que a corrida e o consumo da endorfina ainda não são atividades consideradas perigosas ou ilegais. Não há penas previstas em lei para quem treina demais, bem como eu desconheço a existência de centros de reabilitação para dependentes de corrida. De forma que a única maneira de salvarmos algum amigo (ou a nós mesmos) desse terrível vício é por meio da identificação precoce dos sintomas. Esta coluna pode ser entendida como um serviço de utilidade pública. Por favor, ajudem a divulgá-la. Os zumbis corredores, ou os Running Deads, como gosto de chamá-los, precisam desesperadamente da nossa ajuda.

(coluna publicada da Revista O2, edição 148, Setembro de 2015)