Corredores chatos

Atualizado em 01 de julho de 2016

Você provavelmente conhece o tipo. O cara era um sujeito bacana, culto, profissional bem-sucedido, cheio de assunto, assuntos dos mais variados, cercado de amigos de todos os tipos e, de repente, ele descobre a corrida. Até aí, tudo bem. Correr faz um bem danado para a saúde e para a alma — e felizes daqueles que descobrem esse hábito, mesmo que de forma tardia. O problema é que algumas pessoas acham que não basta correr. É preciso viver a corrida intensamente. Tornar a corrida indissociável de todos os momentos da vida. Fazer da corrida uma forma de vida. Fazer da vida uma interminável corrida.

Tudo começa pela vaidade. O cara perde peso, melhora os tempos nas provas, começa a ganhar elogios e tapinhas nas costas. Aí passa a se achar um atleta com A maiúsculo. Atleta de ponta, coisa de Usain Bolt. Então surgem as fotos no Instagram cruzando linhas de chegada, mostrando medalhas, exibindo a prateleira de medalhas. E posts no Facebook comentando os tempos de cada treino, quantos quilômetros foram percorridos e em quais lugares mundo afora. Há aplicativos criados para que os vaidosos possam compartilhar seus treinos com o mundo, como se alguém realmente estivesse interessado em saber se eu corri 10 km a 5min35s ou 6min17s por quilômetro. Tarados por corrida assim passam a ter um só assunto. Só pensam em corrida, só falam em corrida, não conseguem falar de outra coisa na vida.

“Cinema hoje? Impossível! Tenho que rodar 20 km amanhã na USP.” “Não posso beber porque mês que vem tem Chicago.” “Não vou pra praia porque treinar na areia é ruim para o joelho.” “Amor, hoje não consigo. Tô muito desgastado e com canelite.” Quando frases assim aparecem em conversas cotidianas, é o início do fim. O ex-gordinho ou ex-sedentário que se tornou corredor já terá passado do ponto, ido à loucura e se transformado num temível ser mutante que atende pela alcunha de “corredor-chato”.

Os corredores-chatos apresentam um dos quadros de mais difícil tratamento entre as síndromes mentais. Tornam-se antissociais, afastam-se dos antigos amigos e só conseguem se relacionar com outros corredores-chatos. Mesmo assim, quando se relacionam com outros chatos, logo começam a competir sobre quem corre mais rápido, quem tem a planilha de treinos mais difícil, quem corre maiores distâncias, quem fez o melhor tiro de 3 mil metros e quem tem o relógio mais fuderoso e as vitaminas e suplementos mais caros e novidadeiros do mercado. O corredor-chato é um competidor voraz. Quando não está competindo com os demais, está competindo consigo mesmo. Compete com membros de outras assessorias esportivas, com membros da própria assessoria esportiva, com a mulher, com osfilhos, os chefes, com o cachorro, o periquito, o papagaio. Em estágio terminal, são capazes de competir até com o asfalto do parque.

Se você tem algum parente ou amigo que usa frases como as que citei, adota comportamentos obsessivos diante de um ato tão simples como o de correr ou se acha o mega blaster superstar gostosão das pistas do mundo, é hora de chamá-lo para uma boa conversa. Resgate essa pobre alma perdida. Traga-a de volta para a vida normal, para as boas coisas da vida, para uma vida que tem espaço para corrida, sim, mas que também deixa sobrar tempo e imaginação para amizade, descanso, sexo, boa alimentação, cinema, teatro, literatura, futebol — e todas essas coisas que, por mais que correr seja gostoso, são muito, muito melhores.

Por outro lado, se você se identi_ cou profundamente com o relato que acabo de fazer, preste muita atenção para o conselho que eu vou dar: corra (ou melhor, ande, pois você já corre mais do que deveria) para o psicanalista mais próximo! Porque ninguém merece ser um corredor-chato — ou viver perto de um deles. Fica a dica.

(Coluna publicada na Revista O2, edição #134 – junho de 2014)