Diário da Maratona de Santiago: foi uma guerra!

Atualizado em 19 de junho de 2019
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*Por Ana Notte

Decidi em janeiro que iria fazer a Maratona de Santiago, em 7 de abril. Meu treinador quase me matou: os treinos para essa prova já haviam começado. Mas “não devo estar tão enferrujada assim”, pensei, “acho que consigo correr atrás do prejuízo”. Minha última maratona tinha sido em junho de 2018, os 42 km de Floripa. Confesso que, depois dela, dei uma boa diminuída nos treinos.

Recomeçar não foi fácil, primeiro longo e a planilha já apontava 18 km. Resolvi não encarar logo de cara e dividir a distância, 12 km no sábado, 6 km no domingo. E fui assim, compensando o treino longo do sábado no domingo até entrar no eixo da planilha de treinos.

Não estava bem treinada, mas me sentia forte e disposta, meu pace estava baixando a cada treino. Todos me diziam que Santiago era uma prova para fazer tempo. Clima ameno e plana. Fiquei com a vantagem do clima favorável na cabeça e me tranquilizei, pois estava treinando na USP numa temperatura média de 25 °C.

Uma semana antes da prova assisti a uma palestra informativa oferecida pela assessoria Run&Fun, em que detalharam o percurso, falso plano subida, falso plano descida e a revelação mais temida: a previsão do tempo era de calor.

Muito mais quente do que todos imaginavam. Mínima de 12 °C, máxima de 28 °C. Geralmente essa maratona marca entre 9 °C e 23 °C. “Calma, gente, previsão do tempo com uma semana de antecedência pode errar.” Estávamos torcendo por isso.

Cheguei a Santiago na sexta-feira às 11h30 e já senti aquele “bafo quente” na alma. “Não chove desde 2018.” Quente e seco. Fico meio apreensiva. Fui direto para o hotel, almoço e tarde de descanso.

À noite rolou um corre com a comunidade adidas Runners. Estava reunidos sete países da América Latina para o lançamento do UltraBOOST 19. Muita energia concentrada naquele grupo de corredores.

Sábado foi dia de retirar o kit na exposição da maratona. É sempre uma tentação resistir aos suplementos, relógios, tênis e acessórios esportivos. Estava lotada, mas a organização foi impecável. Espaços separados para retirada de número de peito e camiseta, bem sinalizados e sem filas.

Além dos 42 km, o evento conta com as distâncias de 21 km e 10 km. Adoro esse clima de véspera de maratona, todos ansiosos e excitados. Retiro meu kit feliz da vida, faço algumas fotinhos, não pode faltar o registro. Tá chegando, tudo em mãos. Agora é relaxar (tentar, pelo menos) e esperar a hora da largada.

Mas a organização do evento anuncia nas redes sociais que domingo terá uma “onda de calor” na cidade. Para os corredores ficarem atentos. Meu Deus, se eu já estava com medo desse calor, fiquei apavorada. Tentei seguir plena, tranquila e descansando.

Voltando para o hotel, já deixei o kit todo organizado, junto com toda a suplementação necessária. Pela primeira vez não tive insônia pré-maratona. Dormi que nem um anjo, pra não dizer tijolo.

Acordei às 5h da manhã. Café da manhã especial no hotel para os maratonistas e tudo pronto, partiu desafio. A largada da Maratona de Santiago ocorreria no Palácio de La Moneda. Chegando ao local deparei com uma quantidade enorme de pessoas de todos os estilos e nacionalidades.

Posicionei-me na largada 20 minutos antes, o que me deu uma dose extra de ansiedade, pois o tempo parou. Pulinhos, alongamentos, nervosismo, todo mundo animado. “O que eu estou fazendo aqui?”

Foi dada a largada às 8h da manhã, 17 °C. Tiro de canhão e esquadrilha da fumaça, emocionante. A única coisa que consigo pensar nos primeiros quilômetros é em tentar segurar o pace. Tenho esse problema de sempre largar acelerada e acabo a prova me arrastando.

No começo da prova não teve muita hidratação: 5 km, 10 km e 15 km. Conselho do treinador: pega dois copos e vai tomando um entre os postos. Peguei, mas foi impossível correr 2 km com aquele copo de plástico aberto sem derramar tudo. Dane-se, vou beber tudo de uma vez.

Costumo correr 10 km sem nenhuma hidratação, então achei que não sofreria tanto com isso. Que a cada 3 km (após o km 15) seria suficiente.

Foto/ Divulgação

Fui muito bem nesse começo, controlando meu pace, fazendo meus cálculos mentais malucos — ganhei tanto nesse quilômetro, perdi tanto nesse. Corro fazendo contas e adoro. Cálculo de pace, de tempo, de distância, de tudo. Até o km 18 eu estava com o cálculo do tempo planejado sob controle. Quando chegou o km 19, apareceu aquele falso plano subida que já estava previsto.

Começa a parte mais crítica da prova — sem sombra, um sol de rachar. Nesse momento eu desisto do meu tão almejado recorde. Não só parei de fazer as contas como também comecei a mentalizar que conseguiria terminar a prova, porque nem estava na metade ainda e parecia que minha energia já estava na reserva. Minhas pernas estavam pesadas. Travei uma batalha entre corpo e mente.

Achei os postos de hidratação muito mal organizados, apenas em um lado da rua, uma única tenda, metade isotônico e metade água. Todos em copos de plástico abastecidos pela metade. A logística era péssima, tinha que parar numa fila pra conseguir pegar o seu copinho. Muita gente, pouco espaço. Quebrou o ritmo. Cada parada para hidratar era como recomeçar a correr. Engatar a primeira novamente. Ponto muito negativo.

Fui perdendo energia a cada passada. Olhava para os lados e queria me jogar na grama, desistir, entrar num carro, roubar uma bike, sentar na sarjeta, menos continuar.

Mas sou teimosa. Só vou parar se desmaiar. A dor é temporária. Pode ser, mas dói pra cacete… Continuei correndo, e quando achava que estava por desmaiar (é sério), eu parava e caminhava um pouco.

Meus olhos estavam cerrados nesses momentos. Só me lembro das pessoas gritando, aplaudindo, incentivando. Eu pensava: “Não posso parar, imagina ter que andar tudo isso até o final? Ainda faltam 17 km!”.

Foto/ Divulgação

Aquela bendita Avenida Américo Vespucio não acabava mais. Foram exatos 10 km de tortura. Parava em todos os postos e tomava Gatorade, água, banho de esponja e nada aliviava. Fui assim até o km 30. Um passo após o outro, tentando manter o foco.

Saindo dessa avenida, teve início a mágica. A subida acabou e começou o falso plano descida. Aleluia!!! Entramos numa ruazinha incrível, cheias de árvores, sombras, crianças, famílias. Todas em frente de suas casas, com mangueiras ligadas, copos e baldes de água. Foi uma energia tão contagiante que eu me senti imediatamente melhor. Ganhei até banho de balde na cabeça. Peguei esse gás extra e segui.

Mais uns quilômetros com esse estímulo e encontro o Lucas (treinador), com Coca-Cola gelada e salgadinhos. Meu salvador, foi milagroso. Depois disso foi só alegria. Restavam apenas 9 km, as ruas estavam repletas de árvores e sombras. Agora acelera. Fui firme até o final, mesmo minhas pernas não aguentando mais. Vamos, corpinho!

A última avenida, beirando o Parque Metropolitano, foi um dos pontos mais emocionantes da corrida. Gente de toda parte, várias bandeiras, pessoas aplaudindo, batendo em nossas mãos, gritando pelo nosso nome (que estava grande no número de peito) e cada vez que eu ouvia me dava um gás extra. Quanto mais perto da chegada, mais afunilava o percurso, de tanta gente torcendo. E foi assim, até o final, com a temperatura batendo a casa dos 32 °C. E nessa hora eu pensei: “Eu sei muito bem o que estou fazendo aqui. E quero mais”. Cruzo o pórtico de chegada da Maratona de Santiago emocionada e com os olhos cheios d’água.

Foi a prova mais difícil que já fiz, em que mais precisei do corpo e da mente. Chorei várias vezes de emoção e dor durante o percurso. Tenho orgulho por não ter desistido, foi por muito pouco. Santiago, seu povo está de parabéns! O apoio foi único, essencial. Obrigada a todos que estiveram na torcida por cada corredor, vocês arrebentaram. Agora, foco no próximo desafio. Nova York, aí vamos nós…