Uma estranha na neve: a história de Mirlene Picin

Atualizado em 14 de julho de 2020
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Mirlene Picin, de 39 anos, é esquiadora, biatleta de inverno e ultramaratonista. É também formada em educação física e publicitária, profissão que exerce como freelancer para bancar as disputas internacionais nas modalidades em que ela conquistou 32 medalhas sul-americanas: além do biathlon na neve, também é fera no ski cross country.

Especialidades da atleta, que também é comentarista de esportes de neve nos canais Globo e SportTV, ambas as modalidades fazem parte do quadro olímpico de inverno. Foram elas que renderam à atleta um feito motivo de muito orgulho: a consagração como maior vencedora de medalhas sul-americanas em todas as modalidades olímpicas (de inverno e verão), ultrapassando em 2019 a nadadora Piedade Coutinho, com 30 medalhas.

É um prazer conversar com a maior vencedora de medalhas sul-americanas em todas as modalidades olímpicas! Foram 32 conquistas para alcançar o feito em 2019, é isso mesmo?

Sim! Eu não buscava esse feito, tanto que só fui saber dele quando amigos próximos começaram a perguntar: “Você já foi se informar? Talvez você seja a pessoa com mais medalhas em sul-americanos!”. E foi aí, com a ajuda da historiadora esportiva Kátia Rúbio, que fiquei sabendo do recorde da Piedade Coutinho (Piedade Coutinho Tavares da Silva, nadadora das décadas de 1930 a 1950 que conquistou 30 medalhas em nível sul-americano) e que não havia mais ninguém entre o recorde dela e o meu número de medalhas — a também nadadora Joana Maranhão é a terceira colocada, com 24. Sabendo disso, dois meses antes do Sul-americano do ano passado, passei a focar a busca de mais medalhas. Essa conquista representa para mim uma longevidade dentro de uma mesma competição… Desde 2009, o Sul-americano é a principal competição do meu calendário dentro das provas de ski e biathlon.

Os planos foram atrapalhados por conta do coronavírus?

Sul-americanos, tanto de biathlon quanto de ski cross country — os esportes que me deram as medalhas (principalmente o biathlon) — são realizados nos meses de julho, agosto e setembro em algumas estações do Chile e da Argentina. Dependendo do ano, varia o lugar, mas sempre há as duas etapas nos dois países para valer como Copa Sul-Americana. Por conta da pandemia, não teremos essas competições. Já sei que, neste ano, não conseguirei atingir a meta de buscar mais medalhas.

Quais são, afinal, as modalidades que disputa nos esportes de inverno?

Pratico duas modalidades olímpicas de inverno: o ski cross country e o biathlon. O primeiro é a corrida
de esquis sobre a neve — seríamos os “corredores” do inverno. É um esporte que conta com provas entre 1,5 km e 50 km no quadro olímpico, mas tem também ultras de 190 km. É um esporte de resistência, com as mesmas características do cross country de mountain bike, por exemplo. Os circuitos são na montanha, com terrenos repletos de curvas, descidas e principalmente subidas.

Já o biathlon é composto por essa mesma corrida de esquis, mas, nesse caso, os atletas esquiam o tempo todo com uma carabina calibre 22 nas costas e a prova de tiro é combinada com a corrida. É interessante combinar duas coisas que não combinam, uma atividade física extenuante com uma modalidade de coordenação motora, concentração e precisão. Acertar um alvo de 4,5 cm de diâmetro a 50 metros de distância com a frequência cardíaca a 180 bpm não é das tarefas mais fáceis.

Como foi a descoberta dos esportes de inverno vinda de Mogi Mirim, no interior de São Paulo?

Na verdade, foram os esportes de neve que me escolheram! Foi uma dessas oportunidades da vida. Sempre fui muito ativa durante a infância toda e provei muitas modalidades: joguei futebol competitivo durante toda a adolescência pensando em ser jogadora. Mas, infelizmente, nos anos 1990 o futebol feminino tinha muito menos apoio e as oportunidades eram praticamente nulas. Então deixei a bola, fui estudar publicidade e propaganda e acabei me aproximando de outro esporte, o patim, que já praticava, mas não de forma competitiva. Queria realizar a transição para a patinação no gelo de velocidade, modalidade olímpica, mas como não havia um trabalho na confederação que gerenciasse esses esportes naquele momento no Brasil, só tive tentativas frustradas.

Em meio a tudo isso, apareceu a oportunidade do esqui. Pela TV, em 2006, vi que o representante olímpico nas Olimpíadas de Inverno de Turim daquele ano treinou em Campinas, perto da minha cidade, no asfalto, com o rollerski, que era muito parecido com os patins. Depois que vi essa reportagem, foram 15 meses escrevendo para a CBDN (Confederação Brasileira de Desportos na Neve), enviando meus resultados no MTB e na corrida de patins, tentando uma chance de fazer um teste físico para uma vaga na equipe nacional.

E como é feita a sua preparação para as provas que disputa? Você viaja para cidades com neve para os treinos ou treina por aqui?

A maior parte dos treinos é feita por aqui mesmo: corrida e musculação fazem parte da rotina diária. Treinos específicos para o esqui são feitos com o rollerski, um esqui com rodas para ser utilizado no asfalto. O mundo inteiro utiliza esse equipamento para treinamento de verão, inclusive países da Escandinávia. Ninguém fica na neve o ano todo! Mas eu perco muito em rendimento, pois precisaria passar mais tempo na neve. O grande problema de tudo isso é o custo. No passado, conseguia fazer temporadas mais longas, chegar semanas antes das provas, mas hoje em dia, com uma estrutura bem apertada no quesito financeiro, treinar fora do Brasil está cada vez mais complicado.

Imagino que a busca por patrocínios seja o problema maior…

Sim! Treinar não é dificuldade para quem gosta dessa vida! A maior dificuldade é a financeira, a falta de estrutura. Tenho alguns apoiadores, mas sempre segui trabalhando. Se não trabalhar, a conta não fecha nunca. Sou formada em educação física, mas sigo trabalhando como freelancer na minha primeira profissão, que é o design e a comunicação.

Os esportes de inverno foram uma descoberta tardia, aos 27 anos, correto? Antes disso você já era uma exímia ultramaratonista. Gostaria de saber sobre as ultramaratonas, como começou nessa modalidade, as conquistas…

Na verdade, o esporte de alto rendimento foi aparecer bem tarde na minha vida. Dos 17 aos 21 anos, enquanto universitária, eu patinava. Depois de formada, passei a competir na patinação de velocidade, mas seguia em uma agência de propaganda em tempo integral. Foi assim até 2009, quando já tinha viajado várias vezes para competir no esqui, mas apenas durante as férias. Só fui deixar de estar em uma agência no final de 2009. Entre 2013 e 2015 voltei a trabalhar em agência, mas desde então sigo como freelancer.

As ultras, que por sinal apareceram antes de correr uma maratona, foram reflexo da carga de treino que eu tinha para o esqui, e comecei a me interessar cada vez mais pela corrida. Primeiro fiz a Two Oceans (prova de 56 km na Cidade do Cabo, na África do Sul) em 2013, para somente no final do ano fazer a minha primeira maratona, que foi a Mizuno UpHill (maratona que sobe a Serra do Rastro, em Santa Catarina).

Como foi, logo na estreia em ultras na Two Oceans, ser a primeira brasileira a ficar entre o top 100?

Fui para lá com a ideia de me divertir e conhecer a prova. Estava muito bem preparada fisicamente por vir de três anos de treinamentos muito intensos, mas fui fazer a prova sem expectativa alguma. O bom resultado (até hoje o melhor tempo de uma brasileira é meu: 4h54min46s) realmente foi uma surpresa e foi aí que despertamos para a minha capacidade de disputar provas mais longas e de altimetria exigente. Foi depois disso que comecei a me interessar pelas provas de montanha.

E aí veio o convite para a UpHill em 2013, com alta dificuldade altimétrica…

Sim, estive nas duas primeiras edições a convite da organização. Em 2013 venci com o tempo de 3h48min34s. Já em 2014 fui vice-campeã, com 3h56min21 — a campeã foi Letícia Saltori. Ter feito parte do primeiro projeto todo em 2013, do livro com os 50 participantes, do documentário e da experiência de subir a Serra correndo pela primeira vez em uma prova oficial são coisas que vou levar para o resto da minha vida!

Você conta com uma equipe multidisciplinar para conseguir manter o alto rendimento?

Sim, a equipe de profissionais é toda da minha cidade, Mogi Mirim. Os médicos são do Hospital 22 de Outubro, que me apoia desde 2009. Uma das especialidades de que mais necessito é ortopedia. Atletas de alto rendimento acabam tendo mais lesões do que a maioria das pessoas pode imaginar, por isso frequento os consultórios mais do que gostaria. Tenho também acompanhamento fisioterápico e de uma infectologista, pois me tornei alérgica ao esforço — vários atletas de alto rendimento são.

Meu sistema respiratório às vezes entra em colapso, pois é muito esforço em diferentes condições climáticas e isso dá um nó no corpo. Por fim, o profissional que mais toma conta da minha saúde geral é um hematologista, que acompanha os meus exames laboratoriais, prescreve vitaminas e suplementação e tenta manter minha hemoglobina nos melhores níveis possíveis, já que tenho tendência a ter a hemoglobina baixa, característica genética minha.

Como é enfrentar adversárias que nasceram em países mais frios ou que têm neve vinda do interior de São Paulo? Isso chegou a ser um problema?

É e sempre vai ser… Na verdade, não é um problema se você encarar que essa adversidade é o item principal da modalidade que eu escolhi, por isso tento tirar o foco dessa questão e fazer o melhor que está ao meu alcance. Claro, não é fácil competir com gente que nasceu com o esqui no pé. Por isso temos de ser realistas e ver que certos resultados nunca virão na neve alcançados por brasileiros “legítimos”. Uma medalha mundial ou olímpica em um esporte de neve não se fabrica passando a maior parte do tempo em um país tropical. É a mesma coisa que exigir do time de futebol da Islândia o título da Copa do Mundo.

Pensando nisso, você acha que foi mais longe do que imaginava nos esportes na neve?

Fui muito mais longe do que pensava, mesmo porque comecei no alto rendimento muito tarde. Mas acho que nunca vi a prática esportiva apenas pela saúde. Em tudo que pratiquei desde a infância, eu competia, de maneira recreativa no início, mas sempre gostei da competição. Foi no futebol que isso ficou mais sério, ainda na adolescência. Eu morava no mesmo local em que vivo até hoje quando estou no Brasil, perto de um clube esportivo, por isso provei de tudo, tive uma infância extremamente ativa. Ainda fui da geração que brincava na rua!

Você tem o Projeto Podium Verde, correto? Fale sobre ele.

É um projeto de reflorestamento e conscientização ambiental que está agora em sua quinta edição. O foco é “trocar” medalhas por mudas de árvores destinadas ao reflorestamento. Hoje, cinco anos depois, é um projeto de sucesso, reconhecido entre as comunidades esportiva e ambiental e também pelo público em geral. Basicamente, a cada pódio que conquisto, uma quantidade de mudas é contabilizada e, no final do ano, a totalidade das mudas somadas é plantada em áreas de reflorestamento já existentes e mantidas pela empresa Visafértil.

Suas modalidades são sempre envolvidas pela natureza. O projeto é uma forma de dividir com o planeta as conquistas?

Sim! Faço coisas extremamente ligadas à natureza, a corrida de montanha e o esqui, tendo este último um agravante: o aquecimento global é real e nos últimos anos a minha modalidade de inverno já vem sofrendo com o cancelamento de vários eventos pela falta de neve em alguns locais. Em cinco anos de projeto, mais de 1.500 mudas já foram plantadas. A verdade é que o projeto trouxe de volta para mim a motivação em competir. Não que a competição em si, os resultados e as medalhas não me motivem, mas com ele as coisas voltaram a ter sabor, deixando aquela sensação de estar fazendo algo a mais por mim mesma e pelas gerações futuras.

Falando em gerações futuras, você também encabeçou um projeto de auxílio a crianças carentes em Mogi Mirim por conta da Covid-19. Como foi?

Entregamos ao fundo social que assiste as famílias em risco, famílias carentes, 300 kits de higiene infantil, compostos por álcool em gel, sabonete, creme dental. Para chamar a atenção da garotada, tivemos o apoio de várias empresas e do grupo Maurício de Souza Produções, que forneceu 600 gibis e encartes sobre cuidados e higiene, além de “guloseimas”, como macarrão instantâneo, bolinhos, alfajores. A ação visa levar informação principalmente às famílias com crianças, ainda que o alvo seja o público geral.

Falando em coronavírus, como tem sido a sua rotina nesse contexto?

A minha rotina já estava um pouco diferente desde a última semana de dezembro, quando tive de abandonar a temporada de neve, de novembro a março deste ano, por conta de uma lesão no joelho durante os treinos para as provas de dezembro. Cumpri o meu calendário até as provas antes do Natal, mas em uma condição péssima, limitada pela lesão. Voltei para casa e desde janeiro tenho me dedicado à reabilitação, ao meu trabalho como freelancer de design e ao projeto Podium Verde. Voltei a treinar há três semanas. Como vivo muito próximo a áreas rurais, tenho pedalado sozinha por estradas de terra da região, mas confesso que a rotina está toda alterada por conta da pandemia, sem academia, com treinos limitados… Tudo está bem fora da normalidade com relação à preparação.

Pensando em médio e longo prazo, quais são seus planos para a carreira?

Definitivamente não penso em parar neste momento, mas também não saberia projetar uma data limite… Ainda sigo motivada para treinar, evoluir, aprender cada vez mais sobre os esportes que pratico e sobre meu próprio corpo. Ainda tem muita coisa que quero fazer dentro do esqui — e muito mais na corrida de montanha! Penso ser essa a modalidade que irei praticar por mais tempo. No fim, a dificuldade de sempre são a estrutura e o suporte financeiro. Enquanto der para balancear isso, vamos levando.

Por Fausto Fagioli Fonseca