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Gustavo fez a Ultra Fiord 5 meses após perder uma das pernas

Atualizado em 27 de junho de 2018
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Antes de ir direto ao ponto da grande aventura na Ultra Fiord, gostaria de falar o que aconteceu comigo para você entender o que me levou até os 30 km mais difíceis da minha vida. Nasci em Uberlândia, sou pai de duas meninas — Jessica, de 23 anos e Iasmim, de 7 — e sempre amei o esporte, que está em minha vida desde pequeno. Ganhei algumas medalhas em competições de natação quando morei em Brasília, ainda criança. Aos 9 anos parti para o tênis, pelo qual sou apaixonado na mesma intensidade da corrida. Tanta determinação em treinar me fez ganhar meu primeiro título mineiro na modalidade, aos 12 anos. Aos 16 descobri a peteca, esporte muito forte em Minas Gerais. Jogava com a turma mais velha. Logo me tornei campeão mineiro e vice-campeão brasileiro. Em 2001 comecei a praticar mountain bike e meus fins de semana eram em trilhas de 80 a 100 km.

Em 2008 veio o squash. Viciei nesse esporte, que é altamente competitivo e inteligente. No meu segundo ano de prática fui campeão brasileiro. Na corrida, dei os primeiros passos aos 15 anos, e foi o único esporte que nunca parei. Até então atleta de meia-maratona, sonhava em dobrar a distância. Ficava impressionado com o fato de uma pessoa conseguir correr 42 km. Mas só fui completar a minha primeira maratona em 2016, em função do que contarei a seguir. Em 2010 precisei parar com todos os esportes de impacto que tanto amava por causa da famosa perda de cartilagem. O médico avisou que nunca mais poderia voltar a correr, um balde de água fria no meu sonho de virar maratonista.

A descoberta que mudou tudo

Três anos depois, outra notícia abalou as estruturas: descobri um câncer abaixo da panturrilha esquerda. O médico expôs dois cenários para o meu caso. O primeiro, considerado melhor, consistia em remover toda a musculatura da minha panturrilha — ficaria apenas com os músculos da canela. Seria possível andar com uma órtese, mas praticar esportes, nunca mais. O outro cenário — e o pior — era que havia grandes chances de perder a perna esquerda. Nunca senti nada igual. A vista escureceu, tremia, suava e não acreditava no que estava acontecendo. A boa notícia é que fui para São Paulo para me consultar com três médicos, que foram unânimes em afirmar que não seria necessário amputar a perna afetada. Fiz a cirurgia em abril de 2013 e foi um sucesso, só foi removido um pouco da musculatura. Também encarei cinco meses de quimioterapia e mais 30 sessões de radioterapia, de maio a dezembro do mesmo ano.

Da maratona para a reviravolta

Em 2015 e totalmente recuperado, percebi que meu joelho havia parado de doer, o que me deu esperança para realizar o sonho de correr a maratona. Voltei a treinar e um ano depois cruzei a linha de chegada da Maratona do Rio de Janeiro. Entretanto, em outubro de 2017, descobri que o tumor estava de volta, e dessa vez em uma região impossível de preservar a perna. A cirurgia da amputação seria feita na segunda-feira, 23 de outubro. No fim de semana anterior, fiz de tudo um pouco. Joguei tênis em pé, na cadeira de rodas (sim, quis experimentar como seria), corri uma prova noturna no sábado e no dia seguinte organizei um treino de “despedida” para dez amigos. Para minha surpresa, cerca de 250 pessoas compareceram para correr comigo, um momento único e emocionante. 

Eu só chorei quando ouvi o veredito do médico. Depois passei a enxergar o lado positivo de tudo: viveria para ver minhas filhas crescerem, colocaria uma prótese para voltar a andar e correr. O sonho de criança em ser um tenista de sucesso voltou com força, coloquei na cabeça que me dedicaria ao tênis em cadeira de rodas e ultrapassaria a fronteira dos 42 km.

Uma nova vida, um novo desafio

Catorze dias depois já estava na musculação, com 21 dias voltei a nadar e em um mês retomei os treinos de tênis na cadeira de rodas.
Hoje tenho em mente que não quero passar a vida sem tentar fazer tudo que tenho vontade. Não quero ficar velho, olhar para trás e pensar que poderia ter feito mais. Eu quero ter a certeza de que fiz tudo que estava ao meu alcance. Sempre tive vontade de correr a maratona, mas por que demorei tanto para fazer isso? Precisei passar um susto na época para me motivar. Prova disso foi mais um sonho realizado em fevereiro, quando surfei pela primeira vez em Florianópolis. Nunca havia tentado antes e consegui ficar em cima da prancha com uma perna várias vezes por alguns segundos.

 

A decisão de correr a Ultra Fiord

Em janeiro deste ano fui para o Rio de Janeiro. Fazia uns 25 dias que havia comprado uma prótese para andar e a previsão para voltar a correr era o final do ano. Não queria esperar. Ao ver todas aquelas pessoas correndo no calçadão carioca, mais a lembrança de ter feito uma maratona ali dois anos antes, bateu uma vontade muito forte de fazer algo difícil, quase impossível. Resolvi que iria andar uma prova com a prótese e as muletas. Ansiava por um evento marcante, especial e duro. Eis a escolha da Ultra Fiord, que não poderia ter sido melhor.

Comecei a treinar em fevereiro, caminhava umas três vezes durante a semana e fazia longões de até 7 horas aos sábados. Claro, sempre usando prótese e duas muletas. Por incrível que pareça, minha maior preocupação era com as mãos. Como não conseguia descarregar 100% do peso na prótese, dividia a carga nas muletas, o que fazia com que minhas mãos doessem muito. Ajustei a prótese até que ela se encaixasse perfeitamente ao meu corpo e à postura ideal.

A preparação

As sessões de fisioterapia e musculação foram importantíssimas para me preparar. Contei com dois profissionais extremamente competentes: Paulinho e Fred. Me inscrevi para fazer os 30 km e estimei entre 15 e 16 horas de prova. Procurei todas as informações necessárias para mergulhar na Ultra Fiord. Conversei até com o Fernando Nazário, tricampeão do evento. No início, ele ficou preocupado e deve ter pensado: “Esse cara tá louco! Acabou de colocar a prótese e daqui a dois meses quer ir para a Patagônia correr uma das provas mais difíceis que existe?”. Mas ele entendeu quanto eu desejava viver essa experiência e me ajudou em muitos detalhes. 

Foram dois meses intensos de preparação, de ansiedade e de felicidade por estar fazendo aquilo que amo. Nesse período, um programa de televisão local ficou sabendo da minha história e propôs ir comigo filmar toda essa loucura. Ao todo fomos em cinco pessoas: eu, meu fisioterapeuta, o apresentador, a diretora e o cinegrafista do programa.

Colocando tudo à prova

Desembarcamos em Puerto Natales em 31 de março. Todas aquelas pessoas entusiasmadas com o desafio, se conhecendo, era algo inimaginável há cinco meses, deitado na cama do hospital. Eu estava na Patagônia Chilena para caminhar uma prova que dizem ser uma das mais desafiadoras do mundo. Imaginava quanto seria difícil, mas mal sabia o que me esperava. Finalizei os 30 km em 27 horas, 12 a mais do que havia previsto. Saímos na quarta, dia 4 de abril, às 8h, e chegamos na quinta às 11h. Cruzamos a madrugada, temperatura de -5°C, muita lama. Por várias vezes a prótese ficou completamente imersa no barro. Tinha que rastejar para conseguir sair. Nos momentos mais difíceis, pensava em duas coisas: no dia em que acordei da cirurgia e vi que não tinha mais a perna e na morte do meu pai, 30 dias antes. Faria de tudo para cruzar a linha de chegada.

As últimas 3 horas foram as piores, o terreno ficou ainda mais hostil e minhas mãos doíam muito. Terminei a prova chorando de felicidade, de dor, de medo, de não entender como consegui superar essas 27 horas. Fui carregado para o barco rumo à cidade com hipotermia e as mãos inchadas e doloridas. Várias pessoas me ajudaram enquanto estava no barco, algo bonito de se ver e que o esporte nos proporciona. Sobrevivi à Ultra Fiord! Hoje tenho dois objetivos no esporte: estar entre os melhores jogadores de tênis em cadeira de rodas do Brasil, representando a equipe brasileira nos torneios internacionais, e voltar a correr uma maratona. Tudo isso no prazo de um ano. Tenho certeza de que a força para superar a perda da minha perna veio de Deus, em primeiro lugar, e pelo amor ao esporte. Nunca a dor de perder a perna foi maior do que o amor pelo esporte. E nunca será!