Corrida infantil: filho de corredor de rua, corredorzinho é!

Atualizado em 04 de novembro de 2016
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A base aérea do Campo de Marte já foi alvo de bombardeios das forças federais, que fizeram o que puderam para esmagar o Movimento Constitucionalista de 1932. Também já foi palco de um evento histórico para quem gosta de bandas de rock jurássicas: o primeiro show do Black Sabbath, com formação clássica, em solo nacional, em outubro de 2013. No início de setembro, o primeiro terminal aeroportuário da história da capital paulista recebeu uma corrida infantil, evento pacífico voltado ao corredor de rua bem mais jovem: a sexta edição da Corrida Cartoon.

Impossível não localizar o portão correto para entrar: um inflável gigantesco do Titio-Avô nos informa. Impossível uma criança que tenha acesso à TV a cabo não se empolgar: é só entrar e deparar com os Ursos sem Curso, empilhados na formação tradicional: polar por baixo, pardo no meio, panda no topo. A cada 200 metros ou menos, deparamos com Mordecai e Rigby, Gumball e Darwin, com as Garotas Superpoderosas… Os pares de olhinhos brilham enquanto os cadarços dos dois pares de tênis, o da criança e o do adulto, são devidamente amarrados. Perto do percurso ou longe dele, em torno dos Food Trucks, avistam-se pais com camisetas de corridas para adultos, babás com a camiseta do evento. Alguns não dispensam as meias de compressão, nem mesmo ante o desafio singular de percorrer um único quilômetro pela pista.

Outra corrida a juntar pais e filhos acontece na Cidade Universitária, em São Paulo. O campo de provas e de alegria é a pista de atletismo do Cepeusp, o Centro de Práticas Esportivas da USP. A lembrança de Usain Bolt voando sobre uma superfície similar, nas Olimpíadas, desperta nos corredores mirins a sensação de que eles podem interpretar aquele papel, o de corredores em busca de glória, ao menos no reino da imaginação. As poses para selfies confirmam: o carisma do jamaicano se reflete ali, à margem do rio Pinheiros.

Miniatletas 
Pão de Açúcar Kids, São Silvestrinha, Disney Magic Run… As oportunidades de experimentar esse momento de convívio com os pequenos são várias. Não é tão difícil localizar no calendário um evento para pernas diminutas. É fácil encontrar pais que se orgulham do esforço de colocar os rebentos no caminho do esporte. Mas quais devem ser as expectativas maternas, paternas e de avós, avôs, tios e tias ao ver um pequeno azougue calçando, com toda a animação do mundo, seus reduzidos tênis de corrida? Pansera, no entanto, não se importa se Gabriel vai para o pódio ou não. “O que quero é criar um bem-estar para ele, quero criar uma lembrança boa naquela cabecinha. Acho legal ter boas lembranças da infância.

Por exemplo, um neto que gostava de ir para o sítio com seu avô, e que vai associar, no futuro, aquele local com uma recordação feliz. Talvez fique no inconsciente do Gabriel uma imagem similar, que ele usa para identificar a corrida como algo prazeroso”.

Incentivar e estimular são os verbos que se deve ter em mente quando se relacionam crianças a corridas, segundo Lázaro Pereira Velásquez, mestre em ciências dos desportos pela Universidade de Matanzas “Camilo Cienfuegos”, de Cuba. “Nós apoiamos todas as atividades esportivas voltadas a crianças que sejam espontâneas e sem pressão. Incentivar é positivo. Correr favorece o desenvolvimento das atividades motoras da criança. O importante é participar. Somos contra corridas que premiem vencedores. O interessante é distribuir medalhas para todos os participantes. E há uma grande diferença entre participar porque seu pai está pressionando e participar de uma forma descontraída, graças a um interesse genuinamente provocado”, salienta Velásquez, com a autoridade de quem ministra cursos de miniatletismo voltados para professores de educação física, sob a chancela da Federação Paulista de Atletismo.

 

 

 

A endocrinologista Giuliana Pansera já inscreveu Gabriel num número de provas idêntico àquele acumulado por ele em anos de vida: Disney, My Kids Run e um evento no Beach Park, em Fortaleza. A My Kids Run tem, vale mencionar, a categoria fralda, para atletinhas de apenas 1 ano de vida. A médica não esquenta a cabeça se a prova tem caráter competitivo ou não. A Cartoon já foi assim, mas mudou. Antes, premiava, com uma medalha a mais, os mais velozes; hoje, todos os participantes penduram no peito uma única peça. A My Kids Run premia as melhores performances — um desatino, na visão de Velásquez.

Pansera, no entanto, não se importa se Gabriel vai para o pódio ou não. “O que quero é criar um bem-estar para ele, quero criar uma lembrança boa naquela cabecinha. Acho legal ter boas lembranças da infância. Por exemplo, um neto que gostava de ir para o sítio com seu avô, e que vai associar, no futuro, aquele local com uma recordação feliz. Talvez fique no inconsciente do Gabriel uma imagem similar, que ele usa para identificar a corrida como algo prazeroso.”

Vale a festa
Os personagens, como o Titio-Avô ou o Pato Donald, podem ou não se aliar à brincadeira. As corridas desprovidas desse atrativo, como o Circuitinho, oferecem opções educativas, como oficinas de reciclagem, por exemplo, que entretêm e educam ao mesmo tempo. Ao fim e ao cabo, muitos pais acabam chegando à conclusão de que seus filhos podem ou não se tornar atletas, profissionais ou não, no futuro.

Mas a oportunidade de convívio, de exercer uma atividade conjunta, é um dividendo palpável, líquido e certo. “A corrida é uma ocasião em que as crianças vão poder dar risada, curtir e brincar. E tudo isso ao lado de um adulto que elas amam”, diz Daniela Vieira, diretora de conteúdo do Cartoon, cuja prova infantil já completou seis edições no Brasil, sempre em São Paulo ou no Rio.

A São Silvestrinha, sem o caráter globalizado da Cartoon, é uma opção genuinamente nacional. Associada ao nome mais poderoso que o circuito brasileiro de corridas de rua conhece, a São Silvestre, é um caminho para inserir gente nova nesse universo de satisfação pessoal e coletiva que é sinônimo do verbo correr. Criada em 1994, a versão infantil da São Silvestre foi a porta de entrada no atletismo de um certo Franck Caldeira. Na década seguinte, mais precisamente no ano de 2006, o corredor mineiro ganhou a “São Silvestrona”.

Reunião de passadas de pernas curtas, passatempo, diversão. Corridas infantis, normalmente marcadas para o período matutino, são gostosas como uma tarde no circo, se é que podemos tomar emprestado um slogan publicitário de uma marca de achocolatado.