Rainha Dona Rosa Mota da São Silvestre

Atualizado em 05 de agosto de 2016

Por Rodolfo Lucena

O cheiro. Foi assim que ela se reconheceu em São Paulo quase 30 depois de sua última visita à cidade. “Esse cheirinho é-me familiar”, disse a si mesma a portuguesa ao circular pelas ruas da Pauliceia. Aos poucos, foi entendendo a razão: o álcool usado como combustível em grande parte de nossos automóveis confere ao ar um tom especial, que excita o olfato de forma diferente que os ventinhos do Porto.

Assim, Rosa Mota soube com certeza, garantia plena, completa e absoluta. Estava de volta ao seu palco de vitórias, ao lugar onde deslanchou sua carreira de corredora internacional de longa distância. Aqui deixou marca jamais igualada por quem quer que fosse, homem ou mulher, branco ou negro, nacional ou estrangeiro, europeu ou africano, corredor descalço ou superequipado: não só foi hexacampeã da São Silvestre, mas todas as suas vitórias foram em sequência, uma fileira de conquistas de 1981 a 1986.

Desde aquele último campeonato, quando saiu com um joelho arranhado em tombo na Brigadeiro, nunca mais voltara a São Paulo. Anos atrás, esteve no Brasil, mas voou direto para ser madrinha da Meia-maratona das Cataratas. Mas São Paulo, o Parque Ibirapuera, a Ipiranga com a São João, nada, nunca.

Por isso, talvez, tratou logo de reencontrar o ponto em que foi feliz na cidade. Mal chegou ao hotel e já saiu, foi dar uma passeadinha na avenida Paulista: “Passei pelo ponto onde era a partida; a seguir virávamos na Brigadeiro… Há muitos anos não venho cá, mas lembrei-me como se estivesse a partir”.

A memória parece deixar ainda mais brilhante seu olhar, que até havia pouco estava sisudo. Encontrei com ela no saguão de um hotel na região da Paulista, grudada no celular. Enfim fomos apresentados, saímos para um ponto reservado, nos alojamos em uma mesa afastada, protegida, onde a entrevista vai se desenrolar. Ou não. Mal sentamos, Rosa informa que tem regras para conversar com a imprensa. Não fala sobre seu passado, sobre sua carreira, sobre seus planos, sobre sua vida pessoal. Comenta apenas o evento específico em que está a participar, seja uma corrida ou alguma atividade benemerente — em Portugal, por exemplo, é madrinha de uma corrida contra o câncer de mama.

Esse padrão, diz, vem adotando há anos com a imprensa portuguesa e não pretende quebrá-lo aqui no estrangeiro. Fala direto, determinada, num tom que não admite contestação. Muito bem: são as regras. Que se cumpram. Mas… e a São Silvestre? Ah, a São Silvestre é outra coisa. O sorriso se abre, meio cativando os que estão em volta, meio falando consigo mesmo, sorrindo para a memória.

O começo de tudo
“É um prazer estar aqui em São Paulo, que marcou muito a minha carreira. Minha primeira grande vitória internacional foi aqui, em 1981. Além da alegria de ganhar uma competição, pois todos nós gostamos de ganhar, foi uma prova que me marcou muito porque tinha cá muitos portugueses. Havia o hino, a bandeira portuguesa, a reação dos portugueses, a emoção. Foi uma vitória sentimental”, derrama-se Mota.

De fato, naquele ano ela era apenas uma atleta promissora. Rosa nasceu no Porto, em 29 de junho de 1958. Começou a correr nos seus tempos de Liceu (segundo grau); em 1974, compete pelo Futebol Clube da Foz, onde fica por três anos. De 1978 a 1980, defende as cores do Futebol Clube do Porto. No ano seguinte, salta para o Clube de Atletismo do Porto, onde fica até o final de sua carreira profissional.

Naquele primeiro ano da penúltima década do século 20, ela já tinha vencido uma prova no exterior, fora campeã na Espanha, na Carrera Popular de Santiago de Compostela. Mas o convite para a São Silvestre foi recebido com entusiasmo.

“Para a primeira prova, foram dois portugueses, dizer que queriam me convidar para a São Silvestre. E, para nós, em Portugal, a São Silvestre era uma prova muito importante no cenário internacional, era uma das mais importantes que existiam no mundo. Agora não sei se ainda é, mas naquela altura era. Tínhamos tido atletas portugueses que tinham competido cá. Carlos Lopes tinha competido cá, Manuel Oliveira tinha competido cá, já vários atletas. Quando me convidaram, fiquei muito satisfeita com o convite. Vim e gostei muito de vir.”

Sua primeira vitória, porém, foi ofuscada — pelo menos na imprensa — pela conquista do colombiano Victor Mora, que se sagrou tetracampeão em 1981, “igualando o feito do belga Gaston Roellants”, registraram os jornais.

A prova teve a participação de 6.500 competidores, entre “atletas e atletas-turistas”, como a reportagem da época chamava os amadores. O número já foi considerado alto e deu margem a reclamações de alguns dos corredores de elite, que sofreram empurrões na concentração, apesar do reforço do aparato policial.

Nas páginas de jornais da época, Rosa Mota mal aparece. A Folha de S.Paulo, por exemplo, não cita a campeã na primeira página nem na reportagem interna. O nome da portuguesa só surge em um pequeno quadro em que estão registrados os tempos dos primeiros colocados.

Ela venceu em 26min45s80, deixando para trás a norte-americana Ketty Schilly e a alemã Heide Hutterer. A primeira brasileira foi Eleonora Mendonça, que chegou em sétimo lugar — anos depois, Eleonora foi a única representante do Brasil na primeira maratona feminina dos Jogos Olímpicos (Los Angeles 1984).

Nada disso desvia a alegria da memória de Rosa Mota: “Lembro-me da chegada, lembro-me das atletas. Fui recebida pelos portugueses, pessoas falando de suas saudades, pessoas que não tinham hipótese de voltar a Portugal. Então nos apercebemos o que é ter saudade de seu país. Eu representava para eles um bocadinho de Portugal. Aquele carinho, aquela emoção, tudo me marcou muito”.

Na época, não havia tempo para relaxar, fazer turismo, conhecer um pouco mais da cidade. Depois da prova, por certo participavam de breve celebração da passagem do Ano-Novo. “A comunidade portuguesa organizava jantares, o cônsul estava envolvido às vezes, normalmente a comunidade portuguesa estava envolvida… Falávamos da São Silvestre, cada qual falava de sua terra… Queriam saber como a prova tinha acontecido… Eram momentos agradáveis…”

Tanto que ainda hoje, diz ela, quando chega o fim do ano e as pessoas começam a preparar os ritos de passagem, não raras vezes ela se vê pensando na São Silvestre, tão quentinha em comparação à cidade do Porto, onde vive. Ela então desenrola seu próprio ritual.

“Na passagem do ano, normalmente saio de casa e vou correr. Meia-noite, no Porto, geralmente com muito frio e chuva, não é com o calorzinho aqui de São Paulo, saio de casa. Meu marido vai de bicicleta e eu vou correndo. Andam muitos jovens pela rua, mesmo no frio e com chuva, andam muitos jovens com garrafa de champanhe para festejar a despedida de um ano e a entrada de outro.”

Cá em São Paulo, porém, o tempo era preenchido com corridas. Depois dos breves festejos de passagem, havia no dia 2 de janeiro uma competição internacional de atletismo no Ibirapuera. Participavam apenas os melhores atletas da São Silvestre, se enfrentando na pista em distâncias diversas. Havia público interessado, que pagava para assistir àqueles gigantes em sapatilhas — na edição de 1982, a primeira em que Rosa Mota participou, o ingresso custou CR$ 100 (para comparar: o jornal custava CR$ 40). A portuguesa voltou a vencer, derrotando nos 3.000 metros em pista a alemã Heidi Hutterer. Iniciava com bons presságios o ano de 1982.

Acumulando conquistas
Se a vitória permitiu que deslanchasse sua carreira internacional, suas pernas e fôlego lhe valeram conquistas impressionantes, ao lado de pioneirismo: participou da primeira maratona feminina a integrar o campeonato europeu de atletismo. Foi sua estreia na distância e também sua primeira vitória: a pequena portuguesa (1,57 m, 45 kg) não estava no rol das favoritas, mas, nas ruas de Atenas, deixou para trás nada menos que a dama nórdica Ingrid Kristiansen, norueguesa que viria a ser tetracampeã da maratona de Londres e dona da melhor marca mundial na distância.

Assim, Mota já chegou, em 1982, como favorita entre as mulheres. Com seu jeito simples, encarou o percurso, apontado sempre como muito difícil. A ela, não assustava, ainda que reconhecesse seus desafios, conforme me disse: “Era uma descida forte e depois subida forte. Nunca me machucou. Não me lembro de ter tido alguma dificuldade. O percurso não era fácil, era difícil. Tínhamos outro adversário, que era o calor. Vínhamos da Europa, no inverno. Mas eu sempre me senti muito bem com o calor, a umidade, as subidas. Era o meu forte, estava em casa. Não tive dificuldade nenhuma de que eu me lembre agora”.

O sorriso da vitória, pelo menos, não indicava sofrimento. Na primeira página da Folha, Rosa era só alegria ao lado de outro português, Carlos Lopes, que viria a ser campeão e recordista da maratona olímpica (Los Angeles 1984). Com a coroa de louros, as camisetas com as cores portuguesas, o brasão lusitano e as medalhas de campeões, ambos sorriem para o público como rei e rainha saudando os súditos.

A Olimpíada de 1984, por sinal, é tema das entrevistas dos atletas que chegam, no final de 1983, para a São Silvestre. Rosa Mota, que buscava então sua terceira vitória seguida, critica atletas do cenário internacional que refugaram o convite dos organizadores da prova brasileira. Sua declaração aos jornais não tem meias palavras: “Discordo daqueles que não quiseram participar dessa competição alegando treinamento para os Jogos Olímpicos. Considero isso uma desculpa sem cabimento. A São Silvestre é uma etapa importante de minha preparação”.

E lá se foi ela para a largada, muvucada como sempre, agora com mais atletas ainda. São 10 mil corredores que aguardam o sinal de partida, anunciado para as 23h. Dessa vez, a novidade vem do interior brasileiro. De Cuiabá chega uma menininha recém-entrada na adolescência, mas já uma gigante no atletismo brasileiro. Jorilda Sabino, a corredora descalça, chega credenciada pela prata nos 3.000 metros no troféu Brasil.

“Adversária marcante, só tive uma, que eu me lembre agora”, disse-me Rosa Mota no conforto do saguão do hotel internacional na região da Paulista. A portuguesa não se recordava do nome da rival, mas sabia tudo do desafio: “Aqui teve uma menina que foi segunda, que era muito novinha, mais nova do que eu, e digamos que até a Consolação, faltando 2 ou 3 km, a miudinha deu um bocado de luta. Foi a miúda que me deu mais luta em duas ou três edições. Mas na parte final eu acabava sempre muito à vontade”.

Mais ou menos. Isso foi fato na edição de 1983, quando a Cinderela Negra, como algumas reportagens citavam Jorilda, desponta para o breve estrelato na São Silvestre. A menina deixou para trás estrelas brasileiras como a recordista dos 3.000 metros Eliane Reinert, a já citada Eleonora Mendonça e Angélica de Almeida — esta, mais tarde, seria a representante brasileira na primeira maratona feminina em Mundial de atletismo.

No ano seguinte, porém, Jorilda deu mais trabalho. Rosa venceu, por certo, mas a diferença sobre a brasileira foi de apenas 23 segundos. Independentemente da rivalidade, as duas se irmanaram para reclamar da bagunça em que fora transformada a largada da prova. Saindo entre dois pelotões masculinos, as mulheres da elite sofriam empurrões e eram colocadas em situação desagradável, aumentando os problemas que a corrida oferecia.

Na entrevista, nos dias de hoje, Rosa prefere elegantemente deixar para trás esses eventos incômodos. Não comenta os perrengues, não cita as provocações, lembra apenas as alegrias e gostosuras do evento. O certo, de qualquer forma, é que a prova foi ficando cada vez maior, e a estrutura de proteção aos atletas não foi nunca suficiente para dar a todos a tranquilidade necessária.

A última São Silvestre
Vários reclamavam, alguns chegavam mesmo a desistir. Em janeiro de 1986, o organizador do evento, Júlio Deodoro, dava entrevista falando das dificuldades de conseguir trazer atletas internacionais. Ele elogia a então tetracampeã da São Silvestre: “Conto com a boa vontade de atletas estrangeiros, alguns abrem mão do cachê. Na Europa, Rosa Mota cobra US$ 5.000 por participação”.

Ela vinha, mesmo sofrendo empurrões na confusa largada. Na edição de 1985, registra a imprensa da época, uma mulher do público tentou abraçá-la durante a competição. Talvez fosse até uma manifestação amistosa, mas poderia ter custado o título à corredora ou mesmo algum eventual problema de saúde.

Pentacampeã da São Silvestre e já consagrada no mundo — bronze na maratona olímpica em Los Angeles 1984 e bicampeã da maratona de Chicago —, Rosa Mota ainda uma vez acredita no Brasil e vem para sua querida São Silvestre de 1986.