Dominância dos Quenianos nas Corridas de Endurance

Atualizado em 12 de dezembro de 2017
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Durante as duas últimas décadas, o cenário internacional de corridas de média e longa distância tem mudado dramaticamente. Dessa época até a atualidade, os corredores de origem africana têm dominado a maioria dessas provas. Para se ter uma idéia, na lista dos 20 melhores corredores de endurance em 2003, 85% eram africanos, no qual 55% eram quenianos. O desempenho dos quenianos nas provas de média e longa distância de competições como as Olimpíadas e os campeonatos mundiais nesse período demonstra a superioridade desse país.

Um aspecto interessante e que deve ser enfatizado, é o fato de que a maioria dos bons corredores do Quênia vem de um grupo de oito pequenas tribos chamadas Kalenjin, que tem aproximadamente 3,5 milhões de pessoas. Entre essas tribos Kalenjin, a tribo dos Nandis tem apresentado os melhores resultados e eles constituem apenas 2% da população do Quênia. Sendo assim, a questão que pode ser levantada é porque os corredores quenianos apresentam um desempenho tão bom em provas de endurance? Para tentar responder a essa pergunta, nós discutiremos em dois artigos (Parte I e Parte II) alguns fatores fisiológicos que são relacionados à performance em provas de média e longa duração.

Consumo máximo de oxigênio (VO2max) – Conceitualmente, o VO2max pode ser definido como a máxima capacidade de captação (pulmões), transporte (coração e vasos) e utilização do oxigênio (principalmente pelos músculos), durante exercício dinâmico, envolvendo grande massa muscular corporal. É a variável fisiológica que melhor representa a potência aeróbia, ou seja, é uma medida da quantidade máxima de energia que pode ser produzida pelo metabolismo aeróbio em uma determinada unidade de tempo. Indivíduos que apresentam valores altos de VO2max podem apresentar bom desempenho em provas de endurance.
Alguns estudos têm sido realizados com o intuito de verificar os valores de VO2max de corredores quenianos. Num estudo que realizou a comparação entre os valores de VO2max de corredores de elite quenianos e escandinavos, revelou que os quenianos tinham valores muito altos de VO2max (79,9 ml/kg/min), no entanto não foram significativamente mais altos do que os valores de VO2max dos escandinavos (79,2 ml/kg/min). Os autores desse estudo afirmaram que apesar dos quenianos serem de elite, somente poucos dos melhores corredores do Quênia participaram da amostra. Sendo assim, existe então a possibilidade dos melhores corredores quenianos altamente treinados terem valores de VO2max maior do que a média de 79,9 ml/kg/min.

Isso pode ser visto pelo VO2max de um corredor queniano altamente treinado, que apresentou um valor de 84.8 ml/kg/min, o qual é maior do que o VO2max observado nos escandinavos. Entretanto, outros estudos com corredores caucasianos de elite (caucasiano é um termo utilizado para classificar a raça humana de cor branca) têm revelado valores de VO2max similares aos altos valores encontrados em corredores quenianos.

Percentual do VO2max utilizado (%VO2max) – A capacidade que um corredor tem para sustentar um alto percentual do VO2max tem sido uma variável interessante para predizer a performance em provas de endurance. Um aspecto interessante nessa abordagem é a investigação de atletas que são de origens étnicas e raciais diferentes. Alguns estudos têm verificado essa relação entre corredores caucasianos e negros. Um estudo realizado com corredores de elite negros e brancos da África do Sul mostrou que os dois grupos foram capazes de correr em similares %VO2max em provas de distância de 1,5km a 5km, sendo que em provas com distâncias superiores a 5km, o %VO2max sustentado pelos negros foi mais alto do que para os brancos.

Dessa forma, observou-se que a diferença tornava-se maior com o aumento da distância. Segundo os autores desse estudo, parte da explicação para essa diferença poderia ser com relação ao fato de que os negros foram predominantemente corredores de longa distância, enquanto que os caucasianos foram primariamente corredores de média distância. Outro estudo também comparando corredores negros e brancos bem treinados da África do Sul mostrou que os negros eram capazes de sustentar maiores %VO2max em provas de endurance. Quanto aos corredores do Quênia, poucos são os estudos que relacionaram a performance desses atletas com o %VO2max sustentado por eles durante as competições.

No entanto, sabe-se que um corredor queniano chamado Kip Keino, atleta da década de 60, utilizava 100% do seu VO2max quando competia em provas de 5km e 97% VO2max em provas de 10km. Alguns fatores que podem explicar a superioridade de atletas que conseguem sustentar altos %VO2max são relacionados às características dos músculos envolvidos na corrida. Muitos estudos têm apresentado evidências científicas que atribuem uma boa performance em provas de endurance a uma maior proporção de fibras musculares tipo I na constituição do tecido muscular de corredores. Essas fibras, também conhecidas como fibras vermelhas ou fibras de contração lenta, utilizam o oxigênio como o elemento principal para a produção de energia aeróbia, sendo o tipo de fibra mais típico de atletas de endurance.

Alguns dados na literatura indicam que corredores quenianos possuem altas proporções de fibras tipo I na constituição da sua musculatura (70% de fibras musculares tipo I). Esses resultados podem ser confirmados de com estudos que realizaram a comparação das proporções de fibras tipo I de corredores quenianos com corredores da África do Sul. Os atletas do Quênia apresentaram uma maior proporção desse tipo de fibra do que os atletas sul-africanos. Dessa forma, o fato dos corredores quenianos apresentarem grande proporção de fibras musculares tipo I pode ser um fator que consideravelmente explica a diferença de performance de endurance desses atletas.

Na próxima semana será publicada a segunda parte do artigo sobre “Dominância dos Quenianos nas Corridas de Endurance”.