Imagens de montanha: os pioneiros do olhar vertical

Atualizado em 22 de junho de 2017
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Parte 1 – Os pioneiros do olhar vertical (1860-1950)

Fruto de longa pesquisa para um livro futuro que me levou a descobertas fascinantes, este artigo é uma pincelada do material que apresento em eventos de montanhismo e que foi inicialmente apresentado no informativo Mountain Voices. Devido ao número crescente de montanhistas que navegam pelo ativo.com, é com grande prazer que eu apresento um resumo histórico sobre as mil facetas da incrível arte de Documentação de Imagens de Montanha.

Ultrapassa as fronteiras do imaginável o fascínio da Humanidade pelo registro documental. Desde os primeiros rabiscos rupestres em cavernas até a invenção da Fotografia, no início do século 19, que o Homem busca evoluir quanto ao uso de técnicas e materiais que lhe permita eternizar imagens com maior precisão.

Os primeiros registros de montanhismo que se tem notícia antecedem a fotografia ou a sua popularização, foram feitos por ilustradores talentosos que se encarregaram de sagrar para a prosperidade importantes passagens dos primórdios do montanhismo. Como as clássicas litografias de Gustave Dore sobre a gloriosa e trágica escalada do Matterhorn, por Edward Whimper em 1865, que após alcançar “o último cume dos Alpes” perdeu quatro de seus homens na descida. Esta tragédia comoveu tanto os europeus que a Rainha Victoria cogitou proibir o alpinismo em suas terras. E foi Dore, o famoso criador da célebre imagem do Quixote de Cervantes, quem imortalizou as cenas deste importante marco do montanhismo mundial.

A documentação de imagens de Montanha originou-se a partir do registro de Aventura, que tem raízes na fotografia de Natureza. Enquanto na Europa os primórdios da fotografia trataram basicamente do Retrato (técnica até então bastante complicada pelo longo tempo de exposição), na América de 1840 o paisagismo era o grande tema americano.

Não é difícil de imaginar as mil dificuldades enfrentadas pelos primeiros documentaristas de campo nesta época, com seus poucos recursos e pesados equipos. Eles utilizavam câmeras enormes de madeira e alguns carregavam dezenas de quilos de materiais para fotografia, que incluíam muitos químicos e pesadas e frágeis chapas de vidro.

A primeira câmera desenvolvida para viajantes foi criada para Roger Fenton cobrir a Guerra da Criméia, em 1850, e desta fase em diante deu-se início a busca por melhorias técnicas e recursos para facilitar o trabalho de campo. Mas os maiores problemas destes fotógrafos só foram resolvidos com a invenção do registro em folhas de celulóide e com a produção em série de umas câmeras compactas que faziam “kodak” a cada clique. Mas isto é outra longa história…

A história da Documentação de Montanha está estritamente ligada à história da fotografia e às explorações modernas, época em que alguns intrépidos seres lançavam-se em ousadas expedições ansiando por “conquistar” os últimos pontos intocados da Terra: as mais altas montanhas, os pólos, as áreas ao qual nenhum homem civilizado havia chegado. Talvez a frase “Jamais para mim a bandeira abaixada, jamais a última tentativa”, proclamada por um dos mais notáveis exploradores polares, Sir Ernest Shackleton, resuma bem o sentimento da época.

Ao término do século 19 e início do 20, os fotógrafos ansiavam por documentar o que poucos viram com os próprios olhos e os exploradores necessitavam de uma espécie de prova sobre as suas realizações, tanto para assegurar a veracidade de seus feitos como para obter sucesso na divulgação das Conquistas, o que às vezes significaria a garantia da próxima empreitada. E assim foi sendo, nas décadas que precederam as conquistas do Pólo Norte e Sul, do Everest, ou mesmo, as grandes travessias pelos mares e desertos da Terra.

No desenrolar do século 20, as expedições não partiam sem um fotógrafo ou uma câmera para registrar os grandes momentos da jornada: o cume, as roubadas, as possíveis descobertas. Um dos exemplos mais famosos desta fase é a lendária expedição do próprio Shackleton à Antarctica, em 1914, quando toda a tripulação do Endurance ficou presa por 22 meses no gelo. E é claro que esta expedição não teria a repercussão que teve se não houvesse na tripulação a figura de Frank Hurley, talentoso e ousado fotógrafo que continuou a documentar mesmo durante todas as adversidades enfrentadas neste período de sobrevivência, o que permitiu que toda a saga desta expedição chegasse ao conhecimento do público.

Impossível listar os principais acontecimentos dos anos dourados da Documentação de Montanha. Em cada canto do mundo indivíduos detentores de grande determinação e ousadia escreveram parte desta história, inicialmente pelo desejo dos escaladores de registrar suas aventuras, que contribuiu em muito na história mundial, tanto deste segmento de Documentação como do próprio Montanhismo. Dentre alguns destes anônimos, destaque para G. A. Fowkes (com imagens raras de 1900) e do ávido escalador Guido Rey. Em 1893, Guido escreveu um livro sobre as difíceis escaladas que realizou e, em 1914, lançou “Alpinismo Acrobático”, um dos primeiros livros da história com fotos de escalada técnica.

Porém o maior mérito pela evolução deste segmento se deve a alguns indivíduos que realmente dedicaram parte de suas vidas em prol desta árdua e desafiante arte documental.Explorador, montanhista, fotógrafo e cartógrafo extraordinário, o lendário Henry Bradford Washburn Jr. (1910-2007) foi homenageado com diversos títulos ao longo de sua carreira (medalhas de mérito do Rei Albert, da National Geographic Society, etc) pelo importante trabalho de mapeamento de regiões montanhosas.

Especializado em fotografias aéreas, que lhe ajudava a planejar suas expedições, deu a volta ao mundo para elaborar os mapas mais precisos de locais como Grand Canyon, Chomolungma (ou Everest) e Denali (ou McKinley). Em 1935, liderou uma expedição da NGS ao Yukon (Canadá), mapeando cerca de 13 mil km2 de território “desconhecido” nos mapas e, em 98, aos 88 anos, liderou outra que determinou que o ponto culminante da Terra era maior, media 8.850m.

Além de publicar livros sobre seus feitos, Washburn esteve à frente da comunidade escaladora americana de 1920 a 1950, tendo realizado a abertura de importantes rotas e ascensões singulares em alguns dos maiores picos do Alasca. Em janeiro, partiu para expedições celestiais, após 96 anos de proezas.

Walter Hahn (1889-1969) é responsável por uma das mais importantes coleções fotográficas sobre escalada e montanhismo da história. Mas com certeza a escalada mundial deve muito aos irmãos escaladores George (1870-1965) e Ashley Abraham (1876-1951), que eu considero como os primeiros Fotógrafos de Montanha da história, com um espetacular trabalho documental que se iniciou com a primeira foto da dupla, de 1890, e se estendeu até a década de 1920. As lentes dos Abraham Brothers registraram escaladas épicas nos primóridos do montanhismo e escaladores lendários, como o britânico Owen Glynne Jones (1867-99), considerado “o pioneiro da Escalada Atlética”. Os Abraham publicaram alguns livros e, só para ter uma idéia do quanto eles registraram e ajudaram na evolução da escalada da época, algumas de suas memoráveis primeiras ascensões são hoje graduadas na escala inglesa como “Very Difficult” e “Severe”.

Os primeiros fotógrafos ajudaram a escrever a nossa história, registrando momentos ímpares dos grandes nomes da escalada mundial, pioneiros como George Mallory (himalaísta pioneiro), Colin Kirkus (autor da primeira escalada em estilo alpino no Himalaia) e Oscar Eckenstein (um dos mais reverenciados de seu tempo). Somente exemplificando algumas das pérolas imortalizadas por estes artistas, existem imagens de Eckenstein durante as primeiras tentativas de escalar o Chogo Ri (ou K2, em 1902) e o Kanchenchunga (em 1905), du
as das maiores montanhas do mundo. Lembrando que a escalada trágica do Chogo, onde quatro integrantes morreram em uma avalanche, é considerada como a primeira tentativa séria de escalar a “número 2”.

O mais curioso destes registros é que em ambas expedições Oscar tinha como companheiro de cordada o enigmático e bizarro Aleister Crowley, considerado por muitos como o maior bruxo do século 20 (lembram daquele som do Black Sabbath?! Pois é…). Os diários do mago ocultista apontam Eckenstein como o seu grande mentor no alpinismo. Com certeza, se não houvessem fotos destas escaladas, que também incluem México e Alpes suíços e italianos, muitos duvidariam…

Só para ter uma idéia do quão desenvolvida era a Fotografia de Montanha da época, confira a data das primeiras publicações do gênero, algumas ainda na ativa: Alpine Journal (1862), The Cairngorm Club Journal (1887) e The Climbers Club Journal (1898). Outro exemplo, o Museu Suíço de Berna possui um acervo com cerca de 160 mil fotografias, que retratam escaladas audaciosas, os povos das montanhas e as mudanças dramáticas vividas no Alpinismo nos últimos 150 anos, com exemplares raros que representam o inicio da Fotografia de Montanha, por volta de 1860.

Neste acervo, encontram-se por exemplo imagens das primeiras mulheres alpinistas (escalando de vestido no século 19) e do legendário fotógrafo Dölf Reist, que produziu imagens como a dos primeiros suíços no Chomolungma – em 1956, a segunda e terceira ascensão da história, inclusive com a primeira foto convincente de um escalador no topo do mundo.

Exemplo clássico dos primeiros marcos da Documentação de Montanha provém da maior delas. A Inglaterra, após fracassar nas conquistas dos dois Pólos, sabia que o seu último grande triunfo poderia vir do Chomolungma, conhecido também como terceiro pólo (ou Everest, para quem aceita). Um reconhecimento clandestino foi feito em 1913, duas malogradas expedições em 21 e 22 e uma derradeira e trágica em 24 entraram para a história do montanhismo, muito antes da primeira expedição que comprovou ter alcançado o seu cume, em 53.

E muito disto se deve aos esforços do cinegrafista John Noel, que documentou para o mundo todos os pormenores das primeiras tentativas, inclusive tendo filmado as últimas imagens de Mallory e Irvine antes de desaparecerem rumo ao cume. Noel se antecipou ao seu tempo, sendo o primeiro profissional assumido deste segmento de Documentação, consciente do valor de suas imagens para o público e para a história e, inclusive, fundou o que acredito ser a primeira produtora especializada em imagens de Montanha, a Explorer Films, no início do século passado.

E o padre italiano Alberto Maria De Agostini, considerado por muitos como o último dos grandes exploradores das solitudes austrais, não pode deixar de ser lembrado nos primórdios da Documentação de Montanha. Fotógrafo e cinegrafista, De Agostini chegou na região sul da Patagônia em 1910 e por quase 30 anos batizou glaciares, escalou montanhas e, sobretudo, registrou os costumes dos últimos povos indígenas locais, antes destes serem exterminados pelos colonizadores europeus.

Foi De Agostini quem consagrou para o mundo o Monte Sarmiento, montanha que é o grande pano de fundo do filme Extremo Sul, o primeiro longa metragem sobre montanhismo do Brasil (ou ao menos que fala sobre). O seu legado documental, que inclui 22 livros, representa um dos mais importantes documentos visuais sobre a história do Andinismo e das culturas da América do Sul.

A história da Documentação de Montanha brasileira também está relacionada com a da própria evolução da fotografia e do Montanhismo em nossas terras, atividades que nasceram quase que juntas no início do século 19, seguindo praticamente o mesmo croqui evolucionário de outros países.

As primeiras ascensões montanhísticas relevantes em nossas terras são da primeira metade do século 19, inicialmente de pioneiros que buscavam o simples sabor da aventura ou fins de pesquisa, como os registros da subida de ruralistas do período do café em morros cariocas, de aventureiros à Pedra da Gávea (1828), do botânico britânico George Gardner à Pedra do Sino (1841), da inglesa Enrieta Carstiers e alguns anônimos ao Pão de Açúcar (1817) ou mesmo do Monte Roraima pelo inglês Everard Im Thurn (1884).

Os primeiros registros de montanhismo técnico são atribuídos a algumas emblemáticas escaladas, como da maior montanha brasileira da época, o Itatiaiaçu (ou Agulhas Negras de Itatiaia), em 1856 por José Franklin Massena e em 1919 pela dupla Joseph Spierling e Oswaldo Leal, os primeiros que comprovaram atingir o cume principal desta montanha. Com mérito similar, um grupo liderado por Joaquim Olímpio de Miranda alcançou o ponto culminante do Pico do Marumbi em 1879 e, com pioneirismo inigualável, em 1912 o pernambucano José Teixeira Guimarães e seus bravos companheiros abriram uma das primeiras vias de escalada técnica do Brasil, até o bloco mais alto do Dedo de Deus. Os relatos e as fotos destas aventuras são considerados como os primeiros marcos da Documentação de Montanha nacional.

Os registros de nosso passado foram produzidos pelos próprios escaladores por volta de 1950, com algumas exceções mais antigas. O embrião dos registros brasileiros surgiu nos Clubes, que possuem um papel importantíssimo nesta história, pelo incentivo à prática do Montanhismo em seus primeiros anos e por ações que estimulavam o registro das atividades de cada grupo. Tanto que muito da história nacional está guardada em seus acervos. Só um exemplo, o Centro Excursionista Brasileiro, o mais antigo da América do Sul, fundado em 1919, lançou em 1926 a primeira publicação dedicada ao montanhismo no país, O Excursionista.

E aos poucos a comunidade da Montanha foi se estruturando e não tardou a valorização das imagens, inicialmente por meio de simplórios informativos e exposições fotográficas sobre as excursões dos Clubes. Acho que o que temos de mais representativo de nosso passado documental se deve a uma pessoa: Renato José Sobral Pinto, fotógrafo que ainda nos brinda com sua presença e que completou Bodas de Ouro com suas Imagens de Montanha. Porém a relevância de seu extraordinário trabalho e os principais marcos da Documentação de Montanha a partir do pós-guerra eu vou reservar para o próximo artigo, que vai estar bastante especial: de Sobral às Mostras Internacionais de Filmes de Montanha, das filmagens de Gaston Rébuffat para a Disney em 1959 ao idealista Breashers e seu formato Imax no topo do mundo. Não perca!