“Pedala”, hermano

Atualizado em 20 de setembro de 2018
Mais em Bike

POR MARIO MELE

Saber um pouco mais sobre as tradições culturais de nossos vizinhos no continente sul-americano pode ser uma ótima opção para quem busca novas experiências fora do território brasileiro. Quem alia a essa escolha uma viagem de bicicleta ainda tem no contato direto com diferentes povos e costumes a recompensa pelo esforço e outras dificuldades que poderão ser encontradas pelo caminho.

Foi o caso do engenheiro Luís Fernando Marques Rosa, que, inspirado por três estudantes que partiram de bicicleta de Florianópolis rumo a um encontro mundial de escoteiros em Santiago do Chile, escolheu o roteiro de sua viagem de férias. Rosa definiu então um percurso incluindo pontos turísticos ao extremo sul das Américas, entre os quais a cidade de Mendoza e o vilarejo de Puente del Inca, ambos em território argentino. Mas não se limitou a desbravar somente esse país. Pedalando mais a oeste, atravessou a cordilheira dos Andes e, já no Chile, passeou por cidades litorâneas, como Viña del Mar e Valparaíso, esta última estabelecida como o objetivo final.

Rosa conta que, ao contrário do que muita gente imagina, argentinos e chilenos são bastante hospitaleiros. “A grande rivalidade que existe é entre esses dois povos”, conclui.

Apresentaremos o percurso em quatro partes: região dos Pampas, Rio Cuarto–Mendoza, Cordilheira dos Andes e ainda Vale Central–litoral chileno.

PAMPAS
Após desembarcar em Buenos Aires, o primeiro grande desafio é chegar até a cidade de Rio Cuarto, na província de Córdoba. O trajeto, de aproximadamente 600 km, pode ser feito pelas Estradas 7 ou 8. A segunda alternativa é a mais recomendada. Apesar de ambas não terem acostamento asfaltado em grande parte do trajeto, a Estrada 7 é ainda muito pouco freqüentada e, no verão, alagamentos são comuns em diversos pontos.

Já a Estrada 8 é uma das principais vias de acesso entre os países do Mercosul. Interligando Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile, ela tem movimento intenso. “É preciso estar sempre atento ao sair da pista, pois o acostamento é bem desnivelado. Há também muitos caminhões circulando por lá, mas nada que se compare ao trânsito da via Dutra”, explica Rosa.

O relevo plano e a mesmice da paisagem rural podem deixar o percurso um tanto monótono. Na região dos Pampas, o clima é seco e a economia se destaca pela produção de soja e gado. São dados que em nada favorecem o turismo. No entanto, o povo é amável e acolhedor. Segundo Rosa, essa primeira fase da viagem pode ser uma oportunidade para descobrir o espírito de solidariedade dos argentinos daquela região.

Em um lugar descampado como os pampas, não é difícil se deparar com um dos maiores inimigos do ciclista: o vento em sentido contrário. “Por causa disso, levei quatro horas para percorrer um trecho de 20 km. No dia seguinte, com o vento ao meu favor, tive um rendimento quatro vezes superior”, relata Rosa.

As províncias argentinas de Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba são cortadas pela Estrada 8. As poucas cidades que possuem algum apelo turístico estão localizadas na província de Buenos Aires, que é a mais próxima da costa atlântica. A famosa basílica de Luján, por exemplo, situada a 100 km da capital do país, atrai católicos fervorosos durante todo ano – algo comparável à cidade paulista de Aparecida do Norte. Já a pequenina San Antonio de Areco preserva as tradições “gauchas” argentinas, cujos costumes e origens são idênticos aos dos gaúchos rio-grandenses. Com população descendente basicamente de índios e espanhóis, essa cidade promove, todo o fim de ano, a Fiesta del Dia Nacional del Gaucho.

Rio Cuarto, uma das cidades mais importantes da parte central da Argentina, marca o fim da região dos Pampas. Quem estiver de passagem por lá em meados de outubro não pode deixar de conferir o Festival de Jazz en el Centro, onde se apresentam grandes nomes da música argentina.

O cuidado com a saúde é ainda mais importante nessa região. Devido às grandes oscilações térmicas entre o dia e a noite, é necessário estar com o organismo preparado para combater algumas doenças corriqueiras. “Tive de lutar contra um resfriado malcurado. Foi o maior imprevisto que me aconteceu e quase me fez desistir da viagem”, diz o ciclista.

RIO CUARTO – MENDOZA
O segundo trecho de pedalada tem por objetivo Mendoza, na base da Cordilheira dos Andes, responsável por 70% da produção de vinhos da Argentina. Com aproximadamente um milhão de habitantes, a cidade é arborizada, bem planejada e de beleza invejável.

Mas, ao sair de Rio Cuarto, é aconselhável seguir até Achiras, pequeno povoado que conserva a história da população indígena da província de Córdoba. Nessa vila Rosa conheceu dois ciclistas suíços. Tornaram-se companheiros pelos 1.000 km restantes da viagem.

A província de San Luis, vizinha a Achiras, abriga o Parque Nacional Sierra de las Quijadas. Célebre por sua riqueza paleontológica, os fósseis de répteis voadores – pterossauros datados da era mesozóica (mais de 65 milhões de anos) – atraem estudiosos até lá.

Porém, isso tudo são apenas atrações preliminares até chegar a Mendoza, um verdadeiro oásis no clima árido do ocidente argentino. Cortada por canais de irrigação que abastecem as plantações de uva nas fazendas ao redor da cidade, Mendoza tem também um considerável valor histórico. Lá, à frente do exército dos Andes, o general San Martín iniciou o movimento separatista, em 1808, que culminou com a libertação de toda a região do domínio espanhol.

Bastante conhecido, o “Caminho do Vinho” é uma boa pedida para quem quer provar essa bebida e descobrir os segredos da culinária argentina. Nas bodegas espalhadas por Mendoza, é possível acompanhar todas as etapas do processo de fabricação dos vinhos e ainda degustar uma enorme variedade de marcas.

CORDILHEIRA
Atravessar os Andes pelo vale do rio Mendoza é a melhor opção. Somente a partir do entroncamento dos rios Vacas e Tupungato – que formam o rio Mendoza – é que os ventos ficam gelados e a subida mais acentuada. No entanto, o que realmente é de tirar o fôlego é a interminável paisagem que pode ser contemplada lá do alto.

À medida que se ganha altitude, os povoados rurais dão lugar aos acampamentos, ora militares, ora designados a montanhistas. Potrerillos e Uspallata dispõem de uma razoável estrutura turística, suficientemente boa para agradar a um cicloaventureiro.

Ainda na província de Mendoza, já a quase 3.000 m de altitude, está Puente del Inca. O pequeno vilarejo abrigava um luxuoso hotel, construído sob uma ponte natural de pedra. Depois de ter sido devastado por uma violenta avalanche na década de 60, hoje suas ruínas se tornaram atração turística. Esse lugar, que ainda conserva algumas fontes termais, dá acesso ao Parque Provincial Aconcágua.


Puente Del Inca, nos Andes

É preciso sorte para ver o monte Aconcágua por inteiro. O tempo é bastante imprevisível, e algumas nuvens já prejudicam bastante a vista. Fique atento, pois, para visitar o Parque Provincial, é necessária uma permissão, que custa cerca de US$ 50 e é adquirida somente na cidade de Mendoza.

Após despedir-se do maior santuário dos alpinistas na América do Sul, é hora de rumar ao territó
rio chileno. A travessia da fronteira é feita por um túnel de 3 km, no qual ciclistas são barrados logo na entrada. Mas não se preocupe. Os funcionários costumam ser eficientes e em poucos minutos uma caminhonete já está à disposição para rebocar os ciclistas até próximo à estação de esqui de Portillo, no Chile.

Após uma longa descida beirando a estação, chega-se aos memoráveis Caracoles. Dividindo a pista com carros, motos, ônibus e caminhões, Rosa lembra que levou horas para descer os 10 km da estrada. “Depois de uma interminável série de curvas fechadas, chegamos finalmente na cidade de Los Andes.”

VALE CENTRAL E LITORAL CHILENO
No Vale Central, o que se vê novamente são paisagens rurais, divididas em pequenas propriedades. Com o clima favorável à plantação de uva – verão quente e inverno ameno, assim como Mendoza –, essa região também se destaca pela produção de vinho. No entanto, até chegar ao litoral chileno, não faltarão oportunidades para degustar outros sabores. Azeitonas, amoras e frutas-do-conde, conhecidas como chirimoyas, são vendidas “a rodo” na beira da estrada.

A conturbação entre as cidades de Concón, Reñaca, Viña del Mar e Valparaíso comprova a elevada densidade demográfica do litoral chileno. Nesta última, conhecida por sediar o poder legislativo chileno, é indispensável dar uma chegada nos antigos casarões de madeira, que contrastam com o aspecto jovial e badalado que toma conta da cidade.

Eric Savard – Um caso à parte
O Vale Central chileno, mais precisamente na cidade de Los Andes, é a moradia do veterinário Eric Savard. Conhecidíssimo na região, dono de um sítio com vista para a cordilheira, Savard oferece dez camas no sótão de seu chalé para os viajantes.

A única taxa cobrada é o bom senso, para que a limpeza seja mantida e itens essenciais repostos. Mesmo na ausência do veterinário é possível se alojar. Um ciclista americano, que ali encerrou sua viagem depois de se apaixonar por uma índia mapuche, vive no lugar e gerencia os hóspedes de Savard nessas ocasiões.

Rosa, que passou três dias na casa de Savard, conheceu ciclistas vindos do Equador, Canadá e Alemanha e ainda soube, pelo livro de visitas da casa, das mais excêntricas histórias sobre cicloturismo. Casos de pessoas que viajaram com casa de cachorro no bagageiro, de um cozinheiro que prendeu um caldeirão em sua bicicleta e de casais que se conheceram no caminho e oficializaram a relação antes de completar o percurso.

Desses relatos, o mais marcante, sem dúvida, foi o de um casal francês, que, depois de oito anos viajando pelo mundo de bicicleta, teve uma filha. Com uma integrante a mais, continuaram pedalando por mais 6 anos, quando os compromissos escolares da menina obrigaram o retorno ao lar.

DICAS de quem já foi:

• Um livro fundamental para entender as relações entre os países sul-americanos é “Veias Abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano.
• Rosa viajou durante os meses de outubro e novembro, quando as temperaturas são mais amenas e o clima é seco. As vantagens dessa época são as tarifas mais baratas (aéreas e de eventuais hospedagens).

Vivaterra Viagens:
Define suportes preferidos pelos clientes, como datas, companhias aéreas, hotéis e passeios. Trabalha em diversas regiões da Argentina e Chile. www.vivaterra.com.br 0/xx/11/3258-2651

Aurora Eco:
“Pedalada suave” – passeio de uma semana pelas bodegas mendocinas. www.auroraeco.com.br 0/xx/11/3086-1731

Sampa Biker’s:
“Pedalada visual” – travessia dos Andes. O passeio dura sete dias e é realizado anualmente nos meses de janeiro e fevereiro. As estradas são tranqüilas e privilegiam belas paisagens, como as dos lagos andinos. www.sampabikers.com.br 0/xx/11/3045-2722