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Entre o pedal e a guerra: a história de Gino Bartali

Atualizado em 08 de maio de 2017

Gino Bartali nasceu no dia 18 de julho de 1914, em Ponte a Ema, cidadezinha dentro de um cinturão de colinas na região da Toscana, Itália. De origem camponesa pobre, ele teve no ciclismo uma oportunidade para mudar de vida, mas o esporte foi também responsável por tirar dele a pessoa mais importante até então. O irmão mais novo Giulio, outra promessa da família Bartali, morreu durante uma prova, atropelado em 1936. O acidente quase fez com que Gino abandonasse a carreira, mas a criação católica e a honra ao caçula mantiveram o ciclista no selim.

No mesmo ano da tragédia, Gino Bartali venceu o Giro d’Italia, feito repetido em 1937. Em seguida foi a vez de ganhar o Tour de France, em 1938. Essas conquistas fizeram os olhos de Benito Mussolini brilhar. O primeiro-ministro italiano via em Gino uma forma de promover a supremacia fascista. A ideia era usá-lo em propagandas para enaltecer o governo. Mas o esportista fugia do regime com a mesma facilidade com que se afastava dos adversários nas subidas dos Pirineus.

Em 1939, ano em que defenderia a camisa amarela pela primeira vez, a Itália proibiu qualquer ciclista do país de competir na França, nação considerada inimiga. Era a guerra que se tornava cada vez mais inevitável. E quando os conflitos começaram, Gino chegou a ser convocado para o serviço militar e trabalhou como mensageiro, sempre sobre uma bicicleta. Só parou quando conseguiu se tornar reservista.

Segunda Guerra Mundial

Já se sentia o vento gelado e seco do outono italiano quando o arcebispo de Florença, Elia Dalla Costa, chamou Gino Bartali pelo telefone. Tudo que o cardeal disse foi que precisava encontrar o ciclista com urgência. A mensagem seca e direta era compreensível. Dalla Costa estava com medo de que a chamada fosse interceptada pelos fascistas ou mesmo pelo governo nazista.

No dia marcado, Gino vestiu uma roupa qualquer e pedalou 11 km de Ponte a Ema até Florença. Além das folhas secas e vinhedos vazios, o cenário por onde a vista passava era desolador. Meses antes, Mussolini havia tentado bombardear importantes estações de trem na região leste da cidade, mas errou o alvo. A bomba aliada derrubou uma escola e destruiu ainda uma farmácia, ambas em um bairro residencial.

Dalla Costa esperava Gino em casa, nos fundos da catedral da cidade. O arcebispo falava de forma lenta, pensava nas palavras antes que elas ganhassem som, mas logo colocou o ciclista a par da situação dos judeus na região. Muitos passavam fome e frio e precisavam de documentos falsos para sobreviver. Ao final da história, Dalla Costa ajeitou-se na cadeira e mandou a pergunta. Gino toparia ajudar como mensageiro de uma rede completa que trabalhava clandestinamente na região?

Era uma resposta difícil de dar. Em 1943, ano da conversa, o ciclista já era bicampeão do Giro d’Italia e campeão do Tour de France. Um homem conhecido em toda a Itália, que seria facilmente visto pelas estradas onde passasse e que, se fosse pego por algum soldado, fosse ele nazista ou fascista, poderia significar problemas ou até a morte.

 

 

A conversa com Elia Dalla Costa aconteceu no momento em que a Europa não tinha competições e estava destruída pela Segunda Guerra Mundial. Gino Bartali não tinha como ganhar dinheiro, a Itália era dominada pela Alemanha de Hitler e a caça aos judeus havia se tornado intensa. Realmente, não era uma resposta fácil.

O ciclista seguiu para casa e no dia seguinte acordou cedo, colocou a roupa de treino e saiu para pedalar, sem avisar a mulher, Adriana. Quanto menos ela soubesse, mais segura a família estaria. Bartali encontrou o cardeal e um envelope cheio de papéis. O ciclista enrolou bem o material que recebeu, tirou o banco da bicicleta e dentro do quadro escondeu fotos desgastadas e nomes falsos. Tudo ia para gráficas espalhadas pela Itália, onde virariam documentos falsos.

Nessas andanças ele foi parado diversas vezes. Primeiro porque era peculiar ver um ciclista pelas estradas em plena guerra, segundo porque seu nariz preponderante era facilmente reconhecido, mesmo se tratando de um italiano. Em todas, mesmo com medo, Gino desconversou, disse que treinava para as provas que poderiam recomeçar a qualquer momento e usava a fama como justificativa para se afastar.

O número de judeus salvos pela atitude de Bartali nunca pôde ser calculado. O próprio ciclista desmereceu várias vezes o feito, dizendo que muitos outros fizeram mais no período de guerra. Ao menos uma família, ajudada por Gino, é conhecida: os Goldenberg. Durante um período da guerra, a família judia viveu escondida em uma casa do ciclista em Florença. A história foi comprovada por Giorgio Goldenberg, que era uma criança quando encontrou Gino e hoje vive em Tel Aviv, em Israel. Além de ceder o espaço, o ciclista também levava mantimentos para os Goldenberg com frequência. Os serviços de Gino para o grupo clandestino da Igreja Católica aconteceram até o fim da guerra, em 1945.

Pós-guerra

As competições voltaram apenas no ano seguinte e, de cara, Gino Bartali venceu o Giro. O Tour voltaria a enfeitar as ruas da França em 1947, mas sem a presença de grandes nomes. A situação econômica de toda a Europa era miserável, o continente estava destruído e todo o dinheiro existente era destinado para a reconstrução. Gino permaneceu na Itália. Em 1948, prestes a completar 34 anos, ele voltou à França com a equipe italiana formada por jovens e inexperientes ciclistas e um só alvo: o Tour.

Os primeiros dias apontavam uma queda de desempenho. Gino ficou facilmente para trás. Os minutos de diferença ajudaram a imprensa italiana a o apelidarem de “Il Vecchio”, o velho. Mas a virada veio nos Alpes, na etapa de Cannes a Briançon, dona de 274 km e três picos, entre eles o Col d’Izoard e seus 2.361 metros de altitude, o mais alto do dia. Com frio e com uma fome que classificou de absurda, Gino superou o principal adversário na luta pela camisa amarela, Jean Robic.

O livro O Leão da Toscana, uma biografia de Gino Bartali escrita pelos irmãos Aili e Andres McConnon, traz a definição correta do que aquela vitória nos Alpes representou na época. “Para as multidões que o aplaudiam em toda a Itália do pós-guerra, ele logo personificou todo o país e todas as suas emoções — furioso, ferido, indomável e triunfante.” A vitória de Gino devolveu ao país a esperança e deu força para a reconstrução que se fez necessária nos anos seguintes. Daquele dia até o final do Tour de 1948, Gino se manteve tranquilo e com experiência chegou à segunda conquista da principal prova do ciclismo mundial.

No total, ele venceu três Giros d’Italia e dois Tours de France. É até hoje o único homem a vestir a camisa amarela até a triunfal entrada na Champs Élysées com uma diferença de dez anos entre as conquistas. É difícil fazer alguma previsão do que seria a carreira desse ciclista se não fossem os sete anos sem competições, por conta da guerra. Sete anos que significaram o auge de Bartali. Com certeza, ele teria maiores conquistas no esporte.

No fim da carreira, os médicos apontaram uma redução nos batimentos cardíacos de Gino Bartali que estaria tornando-o mais lento. A receita foi beber o máximo de café possível e fumar antes das provas. O ciclista morreu em 5 de maio de 2000, em casa, como pediu à família. Já bastante desgastado, o coração de Bartali simplesmente parou de bater.

Por Lucas Cyrino