Uma portuguesa de ouro

Atualizado em 07 de agosto de 2009
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Por Nanna Pretto

Em 1981, quando a portuguesa franzina se aquecia na largada da São Silvestre, ninguém imaginava que começava ali um reinado, até hoje não superado nem pelos homens. Fazia pouco tempo, cerca de um ano, que a corredora Rosa Mota, na época com 23 anos, começara sua carreira no atletismo profissional. E a prova brasileira era parte do treinamento para as conquistas olímpicas.

Rosa não conhecia o Brasil, muito menos o percurso da corrida, que estava aberta para participação feminina havia apenas seis anos. Com algumas referências dadas por atletas conterrâneos, ela preferiu poupar energia para o final. Até o largo de São Francisco – o trajeto ainda tinha a subida da Consolação antes da Paulista –, Rosa foi comedida e somente então passou a forçar mais o ritmo. Na briga pelo título, a portuguesa ultrapassou a alemã Heide Hutterer, que havia vencido no ano anterior. A segunda colocação ficou com a norte-americana Katy Schlly, cotada como favorita.

Empolgada pela conquista, Rosa prometeu muito preparo para defender o título no ano seguinte. O que ela não sabia é que repetiria essa atitude por mais cinco vezes consecutivas. “Não sei se virei ao Brasil no próximo ano. Mas já vou começar a me preparar para esta competição. Quero voltar e lutar por mais uma vitória”, comentou a campeã na entrevista coletiva após a premiação.

Uma vida nada cor-de-rosa
Ainda criança, Rosa Mota corria pelas ruas do Porto para fugir do medo do escuro, na zona antiga da chamada Foz Velha. Apaixonada pela natação e ciclismo, a portuguesa foi obrigada a escolher a corrida por ser uma modalidade mais econômica. Seu sonho era ser campeã para dar um apartamento aos pais. Ao descobrir que tinha asma, a corrida tornou-se necessária para manter a doença sob controle.

Na busca da cura, Rosa se aproximou do médico José Pedrosa, que a tratou e lançou-lhe o desafio de correr uma maratona. Com dois anos de treino, em 1982, ela sagrou-se campeã da Europa, na Grécia, exatamente no percurso feito pelo soldado Filipíades para anunciar a vitória sobre Tebas na Batalha de Maratona (feito histórico que deu origem à modalidade dos 42.195 m).

Naquele mesmo ano, a atleta portuguesa voltou a correr nas ruas de São Paulo, conseguindo o bicampeonato e uma dobradinha lusitana no pódio, com o corredor Carlos Lopes. Rosa liderou de ponta a ponta e no final fechou os 13 km de prova com o tempo de 47min21s.

A constante presença da colônia portuguesa durante o percurso motivou a corredora, que também recebeu o carinho dos brasileiros. “Vendo este público maravilhoso e a colônia portuguesa presente, já começo a pensar na próxima São Silvestre.”

De fato, em 1983, lá estava ela novamente, na prova que considerou sua melhor apresentação em São Silvestre. Como no ano anterior, ela assumiu a ponta nos primeiros metros e não foi mais ameaçada. Chegou à subida da Consolação com sobra no fôlego e não se deixou pressionar pelo trecho puxado. Assegurou o tricampeonato com a marca de 43min41s59 em um percurso um quilômetro mais curto que o do ano anterior. “Após a largada, só interessa chegar em primeiro. Este desafio é fascinante.”

O ano de 1984 foi consagrado pela conquista da medalha de bronze na maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. No dia 31 de dezembro, a portuguesa se preparava para a quarta participação na São Silvestre. A hegemonia, no entanto, estava ameaçada. Ela disputaria o título com a brasileira Jorilda Sabino, que corria descalça, mas determinada. No final, não deu para a “atleta da casa”, que viu a adversária comemorar seu quarto título com o tempo de 43min35s57, nos 12 km.

A receita para a conquista era simples: “É preciso descansar e treinar. Este é o segredo para chegar ao tetracampeonato”, explicou Rosa.

Feito histórico na prova brasileira
Em 1985, aos 27 anos, Rosa Mota se tornou a única pentacampeã da São Silvestre. Neste ano, precisou de 43min0s85 para decidir a vitória que ela disse ser “mais fácil de conquistar do que fugir dos autógrafos e dos jornalistas”.

No ano seguinte, em 1986, o título imbatível de seis vitórias consecutivas foi o mais sofrido. Rosa começou bem a prova, mas, na descida da Brigadeiro Luiz Antônio, foi empurrada por uma das adversárias e caiu. Machucou o joelho, o cotovelo direito e perdeu o sentido de direção por alguns momentos.

Quando já pensava em desistir da briga pelo título, o corredor português Jorge Martins passou por ela e disse que não parasse de lutar. As palavras foram decisivas para sua recuperação. Ultrapassada por várias atletas, ela foi superando uma a uma, menos a suíça Marine Oppliger, com quem duelou até perto do fim. Na subida da Consolação, a liderança se alternou até a portuguesa assumir a ponta definitivamente. No final da prova, com o tempo de 43min25s, ela encerrava sua participação na tradicional corrida do último dia do ano, mas não a sua trajetória.

A glória internacional
Na maratona de Chicago, em 1983, faltavam apenas 800 m e o primeiro lugar era disputado por Rosa e a neozelandesa Anne Audain que, exausta, caiu e abandonou a prova, deixando a portuguesa livre para a vitória. Era o terceiro triunfo em quatro maratonas e seu primeiro grande prêmio em dinheiro, cerca de US$ 16 mil (R$ 33 mil). Na época, a mãe dela relatou: “Após cruzar a linha de chegada, Rosa correu para um telefone, ligou, perguntou como estavam todos em casa e disse que tinha ganhado a maratona. De dinheiro nada falou. O seu sonho era comprar um apartamento.”

Bronze olímpico
Em 1984, na maratona dos Jogos de Los Angeles, a disputa foi difícil na categoria feminina. A americana Joan Benoit corria em casa com o estímulo da torcida, conhecia bem o percurso e estava disposta a decidir rapidamente a corrida. Joan atacou muito cedo, deixando para trás Rosa e as norueguesas Grete Waitz e Ingrid Kristiansen. Com o decorrer da prova, Kristiansen quebrou e foi ultrapassada por Rosa, que alcançou o terceiro lugar, quando faltavam 2 km para o final, e ali se manteve. Era a primeira portuguesa a conquistar uma medalha olímpica.

Essa medalha vingava as afrontas e ameaças que sofrera por ter trocado a vila olímpica pelo hotel da Nike, pois essa era a forma de ela ser acompanhada pelo técnico José Pedrosa, que não havia sido credenciado pelo Comitê Olímpico Português como treinador. Para entrar no estádio ele teve de se “transformar” em repórter. “As pessoas não percebem que a perturbam quando tentam me atingir.
Como se atrevem a dizer que não sabiam se a Rosa Mota estava em Los Angeles para correr ou a passeio?”, declarou Pedrosa na época.

Superação e recorde em Chicago
Depois das Olimpíadas, Rosa escapou das festas em homenagem aos atletas medalhados e se instalou em Boulder, no Colorado, por três meses, buscando concentração e tranqüilidade para treinar para novas vitórias.
A Maratona de Chicago, ainda em 1984, foi feita em difíceis condições. “Estava gelada dos pés à cabeça. Agora que aquilo passou, vejo que foi um pesadelo. O frio já é o diabo, chover complica, e o vento me deixa doente. Calcule, agora, as três coisas juntas.”

Após desbancar a norueguesa Ingrid Kristiansen, na metade da prova, Rosa correu os últimos 20 km sozinha, cruzando a linha de chegada com a quebra do recorde, em 2h26min21s. A vitória e o recorde valeram a Rosa o prêmio de cerca de US$ 36.600 (R$ 77 mil).

Em 1986, foi o momento de Rosa se consagrar no Campeonato da Europa, realizado em Stuttgart, Alemanha. Todos estavam rendidos à melhor maratonista mundial. Para Rosa, a prova foi fácil e o suplício ficou por conta do exame antidoping, pois ela ficou duas horas e meia esperando que a vontade de urinar chegasse. A ponto de os enfermeiros sugerirem que Rosa tomasse algumas cervejas. Por conta do demorado xixi, a cerimônia de entrega das medalhas ficou para o dia seguinte.

Na maratona de Tóquio, em 1986, não foi o primeiro lugar que chamou a atenção da atleta portuguesa, e sim a admiração que os japoneses têm pelos maratonistas. “Foi uma prova vista por meio milhão de pessoas, sempre eufóricas, em um percurso protegido por mais de 3.000 policiais. Fiquei embasbacada quando nos contaram que o sistema de segurança era para que o público não tocasse nos maratonistas que são, para eles, como deuses na terra”, disse Rosa, na época.

A maratona de Boston foi a décima de Rosa e a sétima vitória. A rival Joan Benoit, que decidira de última hora não participar da competição, declarou: “Se eu tivesse tentando, não teria, certamente, feito melhor, porque, correndo como correu, nas condições em que correu, Rosa era imbatível.” Entre os prêmios que ganhou, Rosa abriu mão de um Mercedes, porque os impostos para transportar o carro para Portugal eram muito altos. Só na segunda vitória, em 1988, quando ganhou um outro Mercedes, é que o governo português isentou-a das elevadas taxas e ela pôde aproveitar o carro.

No ano seguinte, a portuguesa dedicou a vitória na maratona do Mundial de Roma à amiga Grete Waitz, que não pode participar naquele ano. A velocidade aplicada por ela na corrida deixou José Pedrosa em pânico. O técnico gritava a todo instante para ela abrandar o ritmo. Em vão. “Eu reduzia quando Pedrosa gritava, mas 100 m depois já estava rápida novamente. Se me sentia bem, por que diminuir?” Talvez a velocidade viesse com a expectativa de ver o papa. “Ao passar pela praça de São Pedro, olhei para cima, para a janela do Papa. Sinceramente, pensei que ele lá estivesse, para ver passar a corrida. Não estava, paciência.”

Enfim o ouro
Depois das andanças e medalhas nos campeonatos europeus e mundiais, o público português “exigia” de Rosa o ouro olímpico em Seul, em 1988. Na competição, ela se manteve sempre entre as três primeiras posições, em uma acirrada disputa.

A responsabilidade era enorme porque as expectativas eram muito altas. Na véspera da prova, a corredora foi recebida pelo embaixador português, que lhe entregou um ramo de flores: “rosas para a nossa Rosa”.

Nos primeiros quilômetros, seguiam na frente todas as favoritas, a australiana Lisa Martin, a alemã Katrin Doerre, Rosa Mota e Grete Waitz, que, aos 35 anos, se despedia das pistas. A decisão aconteceu nos quilômetros finais. No km 38, aproveitando uma descida e na seqüência de uma recomendação de José Pedrosa, Rosa Mota aumentou o ritmo em busca da primeira posição. Rapidamente ela ganhou terreno e a certeza de que seria a vencedora.

“Pedrosa tinha me recomendado que, aos 38 km, se ainda fosse acompanhada, olhasse para ele. Olhei e ele me disse: `Rosa, é agora ou nunca.´ E eu fui embora. Foi mais difícil do que em Roma, os maratonistas gostam de dizer que a última maratona é sempre a melhor, mas esta parecia que nunca mais chegava ao fim. Foi a vitória mais saborosa”, explicou Rosa ao fim da competição.

A dor da aposentadoria
Apesar de todo o sucesso, Rosa Mota sofria de ciática (irritação e dor no nervo ciático), o que não a impediu de colecionar triunfos. Mas, em 1991, disputando o Campeonato Mundial em Tóquio, viu-se obrigada a abandonar a corrida. Finalmente retirou-se das competições quando não conseguiu terminar a maratona de Londres, no ano seguinte.

“Tóquio foi a maior decepção da minha vida! Aos quatro quilômetros já me sentia mal. Recuperei. No km 25, foi o colapso. Senti uma tristeza muito grande, não por ter perdido o título mundial, mas por não ter podido fazer aquilo que parece tão natural, correr. Parecia ter as pernas presas por correntes de chumbo.”
Considerada uma “Embaixatriz do Esporte”, Rosa Mota ganhou o prêmio Abebe Bikila, em 1998, pela sua contribuição no desenvolvimento do treino das corridas de longa-distância.