Protegido ao máximo

Atualizado em 24 de setembro de 2010
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Quantos corredores já não passaram por chuva, vento ou frio durante uma prova ou treino e tinham certeza de que no dia seguinte acordariam gripados? Para surpresa deles, nada acontece, e ainda têm uma incrível sensação de bem-estar.

Outros corredores chegam ao auge do treinamento para uma maratona e pegam resfriados a cada semana, daqueles com dores no corpo inteiro. Ou então, no dia seguinte aos 42 km, só comprimidos e cama.

A resposta para a “invencibilidade” ou suscetibilidade está no sistema imunológico e sua relação com o esporte. De acordo com Rogério Neves, médico fisiologista do SportsLab, clínica de medicina esportiva, atividades físicas realizadas duas ou três vezes por semana favorecem a recuperação do corpo após qualquer situação de estresse. A repetição do treinamento, regularmente, ajuda o organismo a se adaptar ao novo ritmo do funcionamento. “Assim, na supercompensação, há fortalecimento muscular, aumento da capacidade cardiorrespiratória e do funcionamento das células de defesa”, diz o médico.

A melhora da imunidade pelo exercício está ligada à intensidade com que ele é realizado. Em um estudo feito em 1995 pela McMaster University em Ontário, no Canadá, foram analisados osefeitos do aumento da intensidade e do volume do treinamento na imunidade, tanto em resultados imediatos como no longo prazo.

No estudo, dois grupos de seis corredores treinaram por 40 dias, divididos em quatro fases de treinamento de dez dias. O volume e a intensidade do treinamento variavam com as fases. O grupo 1 correu em volume baixo e pouca intensidade durante a primeira fase, seguido de alto volume e baixa intensidade (50% a 70% do VO2 Máximo). Na segunda fase, baixo volume (distância em que o corredor está acostumado) e pouca intensidade. Por fim, na terceira fase, volume elevado e alta intensidade (1 km com 95% a 100% do VO2 Máximo). Já o grupo 2 inverteu a ordem das segunda e terceira fases.

Os pesquisadores observaram reduções nas taxas de células de imunidade comparadas com as que deprimem o sistema de defesa no treinamento de alta intensidade e no de volume. Isso indica maior vulnerabilidade em corredores que treinam “pesado”, sendo a intensidade mais depressora da imunidade do que o volume.

No estudo também foi descoberto que o sistema imunológico se adaptava às elevações de intensidade e volume. Portanto, os primeiros dias de treino forte são mais perigosos para o desenvolvimento de alguma doença.

Defesa inteligente
Fernando Oliveira Catanho, formado em educação física pela Unicamp (Universidade de Campinas), professor do curso de especialização “Bioquímica, fisiologia, treinamento e nutrição desportiva” e doutorando do Labex (Laboratório de Bioquímica do Exercício), explica que o aumento da imunidade pelo exercício é proporcional ao aumento da taxa metabólica. Isto é, quanto mais o metabolismo estiver ativado, mais o corredor estará protegido.

A corrida, por exemplo, quando praticada com regularidade — e de maneira evolutiva — estimula a defesa contra a instalação da Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica. “Com isso, o organismo do corredor fica naturalmente protegido de artrite e diabetes do tipo 2”, explica Catanho.

Mauro Vaisberg, médico especialista em reumatologia, medicina esportiva, mestre em imunologia e doutor em reabilitação pela Unifesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo) aponta que, ao defender o organismo, o sistema imunológico funciona bem e consegue evitar doenças cardiovasculares. “Com 30 minutos de corrida, ocorre uma renovação nos tecidos e proteção dos vasos sanguíneos”, observa o imunologista.

Já com alta intensidade, principalmente para uma pessoa que não está acostumada, ocorre a imunossupressão, que é a defasagem na resposta de imunidade adaptativa nas células após um esforço intenso e prolongado. Por isso, é comum existirem corredores que treinam para uma maratona e ficam gripados, com dores de garganta.

Segundo Catanho, esse é o momento de optar por um descanso reparador, repleto de alimentos antioxidantes (como chá verde e diversos vegetais verde-escuros), carboidratos (como pães e batatas), proteínas (como derivados do leite e carnes em geral) e glutamina (encontrada em carnes magras, um aminoácido essencial para o sistema imunológico).

Como a corrida protege
Ao praticar a corrida, no primeiro instante o metabolismo começa a funcionar com mais eficiência, incluindo o sistema imunológico. Assim, o exercício:

:: Age no sistema imune inato
Primeira linha de defesa do organismo, contra corpos estranhos e agentes estressores em geral, como traumas ocasionados pelo próprio exercício físico às estruturas orgânicas, como musculoesquelético, articulações e ossos.

:: Organiza os linfócitos, células de defesa do organismo
Ajuda a eliminar o antígeno, gerando maior reparação das células danificadas e maior produção de anticorpos.

:: Aumenta a produção das células Natural Killer
Essas células atuam como respostas imunes, combatendo tumores e infecções virais. As células que já estão infectadas, ao perceberem a membrana alterada, já se autodestroem para evitar a reprodução.

Guerra aos “estranhos”
Apesar de a intensidade ser a maior causa da diminuição da imunidade, o tempo de atividade também conta como influenciador, por conta do aumento da produção de radicais livres, causando o estresse oxidativo.

Esses radicais surgem do oxigênio respirado a cada segundo, e de outras moléculas produzidas no metabolismo das células. Com esse aumento de moléculas de radicais livres, a capacidade de defesa antioxidante não consegue conter os radicais na mesma proporção.

A regra é esta: se há maior contingente de espécies que atacam o organismo, com uma menor capacidade de defesa, o estresse oxidativo está instalado.

Atividades de longa duração ou alta intensidade aumentam essas probabilidades. E o excesso de radicais livres diminui a função do sistema imune (confira o box a seguir).

“Pane” imunológica
Em um estudo recente, conduzido pela Loma Linda University (localizada no sul da Califórnia, nos Estados Unidos), o sistema imunológico de dez maratonistas experientes foi analisado depois de os atletas correrem por três horas até a exaustão.

Esse estudo descobriu alterações em vários tipos de células do sistema imunológico durante a recuperação. Porém, todas essas alterações, exceto uma, retornaram ao normal dentro de 21 horas depois da corrida.

Esses resultados sugerem que alterações no sistema imunológico, mesmo depois de três horas extenuantes de corrida, retornam ao normal em menos de um dia.

Para os pesquisadores, o resultado indica que elevar bruscamente a intensidade ou o volume do treinamento sobrecarrega o sistema imunológico e ainda deixa o atleta mais suscetível a contrair gripes e infecções nas duas horas seguintes ao treino ou à prova que solicitaram muito esforço do organismo. Portanto, os cuidados com descanso, alimentação e recuperação no pós-treino devem ser levados a sério e respeitados com critério, para garantir o bem-estar da atividade esportiva.

Segundo o médico e mestre em imunologia Mauro Vaisberg, essa é a chamada “janela de imunossupressão”, considerada uma pane imunológica, e dura cerca de duas horas ou dois dias após a atividade física muito intensa. É nessa hora que estão mais propensos a ficarem gripados.

Nesse estudo relatado, houve uma comparação de doenças durante a semana posterior à maratona. O resultado é que entre os atletas que treinaram e desistiram da prova, 2% ficaram doentes, enquanto que 13% dos que participaram da corrida ficaram adoentados.

Vale lembrar que em estudo publicado na revista nor
te-americana The Physician and Sportsmedicine, fatores psicológicos também interferem no sistema imunológico, pois também liberam cortisol e adrenalina.

Portanto, se quiser tirar proveito do esporte, o treino e a prova devem ser encarados com prazer e não como um com promisso estressante.

Vaisberg acrescenta que o descanso é essencial para complementar o treinamento. “o processo de regeneração das células dos músculos continua ocorrendo mesmo que o atleta sinta que está recuperado”, completa o médico e mestre em imunologia.

*Por Sara Puerta – Edição 66 da Revista O2