Lance Armstrong: superação e polêmica

Atualizado em 04 de maio de 2006
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POR ANDRÉA DE LIMA E ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ

Recordista em vitórias no Tour de France com sete triunfos consecutivos, o norte-americano Lance Armstrong, 34 anos, anunciou oficialmente sua aposentadoria em julho de 2005. No mês seguinte, o jornal francês “L’Equipe” publicou reportagem afirmando que amostras de urina do atleta, coletadas no Tour de 1999, detectaram a presença de EPO (Eritropoietina), substância capaz de melhorar sensivelmente a oxigenação muscular. Armstrong desmentiu as acusações e deixou no ar a possibilidade de participar da prova no próximo ano.

Além da inédita série de vitórias, Armstrong notabilizou-se por outro estrondoso triunfo: contra o câncer. Quando a doença foi detectada, em outubro de 1996, alguns médicos o aconselharam a encerrar a carreira, mas isso nem passou por sua cabeça: “Pretendo derrotar essa doença e voltar a correr profissionalmente”, afirmou ao receber o diagnóstico. Armstrong superou o câncer graças a um tratamento quimioterápico intensivo realizado no Centro Médico da Universidade de Indiana. A partir do terceiro mês de tratamento, começou a pedalar cinco dias por semana, de duas a cinco horas por dia. Nos dois meses subseqüentes, aumentou a intensidade dos treinos e voltou às competições no começo de 1998. Venceu seu primeiro Tour em 1999. A batalha para recuperar a saúde mudou definitivamente sua maneira de encarar as coisas: “Antes do câncer, eu apenas vivia; agora, vivo intensamente”.

Divisor de águas
A doença representou um desafio muito maior do que as competições. Seu adversário foi um câncer testicular, o mais comum entre os homens com idade entre 15 e 35 anos, com metástases que atingiram o abdômen, os pulmões e o cérebro. Se detectado cedo, esse tipo de câncer tem uma taxa de cura de cerca de 90%. Os médicos lhe deram algo entre 20% e 50% de chances de sobrevivência. Passou por duas cirurgias para a retirada de tumores no testículo e no cérebro e não esmoreceu. Uma combinação de condicionamento físico, tremendo controle emocional e um imenso espírito de competição fizeram com que ele vencesse o desafio e voltasse às corridas. Antes de cair doente, Armstrong ostentava poucas vitórias de expressão em seu currículo. A mais importante era o triunfo no Campeonato do Mundo de 1993. Era um bom ciclista, aguerrido, mas sem nenhum talento realmente excepcional.


Chris Carmichael (foto: divulgação)

Tinha uma compleição física típica de velocista: atarracado, musculoso, pesava cerca de 80 kg. Quando voltou, estava quase 10 kg mais leve, perdera a explosão muscular típica dos velocistas e ganhara flexibilidade e resistência aeróbica. Tornou-se um escalador excepcional, encarando montanhas com uma cadência de pedalagem superior a 90 rpm – enquanto os melhores especialistas não vão além de 80 rpm–, algo nunca visto antes, e melhorou seu desempenho como contra-relogista, pedalando a mais de 100 rpm, enquanto a cadência usual é de cerca de 90 rpm.

Na origem dessa metamorfose está o treinador Chris Carmichael. Quando Armstrong voltou a treinar após superar a doença, não tinha força para movimentar coroas dianteiras muito grandes combinadas com pinhões pequenos. Carmichael resolveu concentrar o trabalho com coroas menores e aumentar a cadência de pedalagem. O resultado foi um treino menos exigente para os músculos, mas que permitiu ao ciclista melhorar significativamente sua resistência cardiopulmonar. A lição de Armstrong é simples e paradoxal: apesar das enormes inovações em matéria de treinamento verificadas nos últimos anos, ele recuperou um fundamento que o ciclismo moderno parecia ter esquecido: aprender a pedalar redondo e ágil.

ano 1992 1999
peso 79 kg 72 kg
potência 374 W 404 W
watts por kg 4,73 5,61

Novas Suspeitas
Imbatível na prova francesa, Armstrong começou a ser vigiado de perto no que diz respeito a doping. Apesar disso, envolveu-se em episódios relacionados com substâncias proibidas. O mais recente surgiu no dia 23 de agosto, quando o jornal “L’Equipe”, que pertence ao mesmo grupo que organiza o Tour, publicou reportagem afirmando que Armstrong usou EPO na edição de 1999 da tradicional prova. O atleta nega tudo e alega um complô dos franceses, que teriam inveja do sucesso de um americano em um esporte considerado “europeu”. As amostras foram coletadas ao final de seis etapas e todas continham a substância proibida. Armstrong não corre riscos de ser punido pela União Ciclística Internacional (UCI), pois as amostras não foram coletadas por médicos responsáveis pelos exames antidoping da prova, mas por cientistas que procuravam aperfeiçoar os métodos de detecção de EPO. Apesar disso, a Agência Mundial Antidoping (Wada) estuda a possibilidade de entrar na Justiça, assim como a Agência Americana Antidoping (Usada). Mesmo que tais recursos não tenham sucesso, essas revelações ensombrecem a imagem do ciclista e põem em dúvida as seis outras vitórias que ele obteve na prova francesa.

Casos anteriores já lançavam suspeitas sobre o atleta. Em março último, Armstrong decidiu processar seu ex-assistente Mike Anderson, que o acusara de despistar inspetores da Wada e da Usada em um exame antidoping surpresa, após o Tour de France de 2004. Anderson afirmou que também teria encontrado uma caixa branca com a inscrição “androstenina” (esteróide androgênico), sem prescrição médica, ao limpar o banheiro do apartamento do atleta. Advertiu, porém, que não viu o ciclista consumir a substância.


Lance no Tour de 2005 (foto: divulgação)

No ano passado, os jornalistas Pierre Ballester e David Walsh publicaram “L. A. Confidentiel” (Editions La Martinière), em que Emma O’Reilly, ex-massagista de Armstrong, faz revelações sobre os métodos de doping usados pelo ciclista durante os anos em que trabalhou para a equipe US Postal. Logo após o começo do Tour de 2004, o exame de urina de Armstrong deu positivo. Foram encontrados traços de corticóides sintéticos. O’Reilly afirma que o ciclista havia tomado a substância durante uma competição um mês antes da prova francesa e não imaginava que daria positivo. A equipe de Armstrong na época, a US Postal, invocou uma dor na região pélvica, tratada com uma pomada com corticóides. As controvérsias em torno do livro e desse episódio levaram uma companhia de seguros americana a não pagar um prêmio de US$ 5 milhões, prometido ao ciclista em caso de vitória na prova francesa. Armstrong entrou na Justiça, que ainda não deu um veredicto, e também processou os autores do livro, mas não ganhou a causa.

Público e privado
A vida pública de Lance Edward Gunderson Armstrong é tão movimentada quanto a vida privada. O pai, Eddie Gunderson, abandonou a mulher, Linda Armstrong Kelly, quando o filho tinha apenas dois anos. Foi campeão de triatlon aos 13 e profissional de ciclismo aos 16, o que quase lhe custou o diploma de segundo grau. Armstrong também participou de competições de natação, entre os 12 e os 15 anos, e de corrida, entre os 14 e os 18 anos.


Junto ao pelotão do Tour 2005 (foto: divulgação)

Em maio de 1998, com 27 anos, casou-se com a relações-públicas Kristin Richard, com quem teve três filhos (o menino Luke, 5 anos, e as gêmeas Isabelle Rose e Grace Elizabeth, 3 anos). As crianças foram geradas por meio de inseminação artificial, garantida a partir de um depósito em um banco de sêmen, antes de ele começar a quimioterapia, em 1996.

O atleta divorciou-se de Kristin em setembro de 2003. “Fomos casados durante quatro anos e meio, dividindo seis casas, três idiomas, três países, uma doença terrível, três filhos, quatro Tours de France e uma escalada profissional. É muita coisa para viver em tão pouco tempo. Estamos mais próximos e somos mais amigos agora do que antes. Temos o compromisso de manter uma boa relação, e não mais um casamento.”

Em outubro de 2003, Armstrong começou a namorar a cantora e compositora Sheryl Crow, com quem ficou até 2006. Entre os retiros do casal estava o sítio nos arredores de Dripping Springs, no Texas, onde Armstrong costuma praticar mergulho a partir de uma queda d’água de 8 m, pilotar uma moto e remar seu caiaque. Gosta de dizer que faz tudo isso para sentir medo, uma sensação de que pode perder tudo de um momento para o outro. “Isso é bom, revigorante.” Para quem viveu epopéias como a luta contra o câncer e sete eletrizantes vitórias na mais tradicional prova ciclística do mundo, esses expedientes não parecem ser assim tão necessários.

OS PRINCIPAIS RESULTADOS

1992
1º EM UMA ETAPA DA SEMANA BERGAMASCA

1993
1º NO CAMPEONATO MUNDIAL (ESTRADA)
1º NA VOLTA DA GALÍCIA

1994
2º NA LIÈGE-BASTOGNE-LIÈGE
7º NA VOLTA DA SUÍÇA

1995
1º EM UMA ETAPA DO TOUR DE FRANCE (36º NA GERAL)
1º NA CLÁSSICA DE SAN SEBASTIÁN

1996
1º NA FLÈCHE WALLONE
2º NA PARIS-NICE
6º NA OLIMPÍADA DE ATLANTA, NA PROVA DE CONTRA-RELÓGIO
17º NA AMSTEL GOLD RACE

1998
4º NA VUELTA DE ESPAÑA
4º NO CAMPEONATO MUNDIAL (ESTRADA)
4º NO CAMPEONATO MUNDIAL (CONTRA-RELÓGIO)

1999
1º NO TOUR DE FRANCE (4 VITÓRIAS DE ETAPA)
8º NO DAUPHINÉ LIBÉRÉ

2000
1º NO TOUR DE FRANCE (1 VITÓRIA DE ETAPA)
2º NA PARIS-CAMEMBERT
3º NO DAUPHINÉ-LIBÉRÉ
3º NA OLIMPÍADA DE SYDNEY, NA PROVA DE CONTRA-RELÓGIO

2001
1º NO TOUR DE FRANCE (4 VITÓRIAS DE ETAPA)
1º NA VOLTA DA SUÍÇA
2º NA AMSTEL GOLD RACE

2002
1º NO TOUR DE FRANCE (4 VITÓRIAS DE ETAPA)
1º NO MIDI LIBRE
1º NO DAUPHINÉ LIBÉRÉ

2003
1º NO TOUR DE FRANCE (2 VITÓRIAS DE ETAPA)
1º NO DAUPHINÉ-LIBÉRÉ

2004
1º NO TOUR DE FRANCE (6 VITÓRIAS DE ETAPA)
6º NO MIDI LIBRE

2005
1º NO TOUR DE FRANCE (2 VITÓRIAS DE ETAPA)