Do baile às pistas

Atualizado em 24 de junho de 2009
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Por Nanna Pretto

Carlos Alberto de Souza Lopes nasceu em fevereiro de 1947, em Vildemoinhos, um pequeno vilarejo próximo à cidade de Viseu, ao norte de Portugal. De família humilde, começou a trabalhar cedo, por volta dos dez anos, para ajudar em casa. O sonho era de ser jogador de futebol no clube Lusitano de Vildemoinhos, mas a fisionomia franzina não ajudava. Nessa época Lopes não imaginava que correria atrás de recordes, e não de uma bola.

O atletismo surgiu por acaso. Em 1966, aos 19 anos, Lopes voltava de uma festa a pé com os amigos. Era tarde da noite e, por dentre a escuridão dos pinheiros, uivos e ventanias, a turma entrou em pânico. No corre-corre Lopes disparou, chegando ao vilarejo antes dos amigos. E ele disputou a informal competição com amigos vendedores de jornais, ou seja, que já tinham a mania das corridas nos pés.

Foi com esse grupo de adolescentes que nasceu a ideia de criar um núcleo de atletismo no Lusitano de Vildemoinhos. Certo dia, Lopes e os amigos saíram para um treino… de 20 km. O resultado foram três dias se arrastando e com dores em todo o corpo. Mas isso não o desanimou.

A estreia o leva ao mar
Em dezembro de 1966, Lopes estreou oficialmente na São Silvestre de Viseu. O pai, que informalmente já sabia da escolha do filho, nada comentava sobre o assunto. Naquela noite, antes da corrida, os dois jantaram como se nada tivesse acontecendo. Ao retornar para casa com a medalha de prata no peito, Lopes encontrou um pai sorridente e orgulhoso do mérito do filho.

Ainda naquele ano, Carlos Lopes foi medalha de ouro em Viseu, no campeonato distrital de cross-country e terceiro no campeonato nacional da mesma modalidade em juniores, o que valeu uma classificação na disputa do Cross das Nações, em Rabat, Marrocos. Lopes foi o melhor português, em 25° lugar. Como prêmio, aos 19 anos, era a primeira vez que o atleta luso via o mar.

A carreira no Sporting
No ano seguinte, 1967, Lopes recebeu a visita do Sporting Clube de Portugal, de Lisboa. Literalmente, o sonho batia a sua porta. Assim, ele ingressou no clube, tendo como treinador Mário Moniz Pereira. Assim começava a carreira profissional.

A ida para Lisboa, deveu-se tanto a razões desportivas, como à promessa de um melhor emprego. Veio também a primeira desilusão: o prometido emprego de torneiro mecânico não aconteceu. Depois de cumprir o serviço militar, em Lisboa, vai trabalhar como contínuo no jornal Diário Popular.

Em 1975, os melhores atletas portugueses são dispensados de parte do trabalho para treinar duas vezes por dia. E os resultados de Lopes não tardaram a aparecer.

No mundial de cross-country realizado em Chepstown (País de Gales), 1976, as instruções do técnico para aquela prova eram que o português desse o máximo de si na marcação dos adversários, não os deixando fugir. Conseguindo isso, seria grande a possibilidade de vencer, já que como sprinter, era superior a qualquer corredor.

Lopes, no entanto, não seguiu as orientações técnicas. “Quando entro numa prova não tenho instruções. Os que estão de fora não podem mandar e dizer que a determinada altura temos de fazer isto ou aquilo. Quem manda é o atleta porque é ele que sabe como se sente”, disse ele, na época, após a vitória.

No dia seguinte, o jornal francês L´Équipe publicou: “Indiferente, soberbo, atleta ligeiro com pernas de puro-sangue, Carlos Lopes parecia um cavaleiro solitário e está estampada na testa a certeza da sua superioridade.”

A história olímpica
Carlos Lopes, que já tinha estado sem glória nos Jogos de Munique em 1972, era uma das maiores esperanças de Portugal para os Jogos Olímpicos de Montreal, no verão de 1976. Lopes teve, aliás, a honra de ser o porta-bandeira da equipe portuguesa durante a cerimônia de abertura das Olimpíadas.

A vitória nos 10 mil m, dava a sensação de que Lopes poderia voltar para Portugal com o ouro olímpico. A tática, segundo o técnico Pereira, era forçar até ao limite. E, das duas, uma: ou o português se arrebentava ou arrebentava os outros. Seguindo as instruções do técnico, Lopes entrou nos últimos 500 m bem adiantado do pelotão. Mas não ia só. O finlandês Lasse Viren era o único a conseguir acompanhar Lopes. Nos últimos metros, Viren atacou forte, ultrapassou Lopes e ganhou o ouro, deixando o atleta luso com o segundo lugar.

“Quando conduzo uma corrida não é para ganhar, é para não perder, porque o que tenho que fazer é afastar os outros, ir dando cabo neles. Esse é o meu espírito”, explicou o atleta após a competição.

Crise de lesões curada pela acupuntura
Após ficar com o vice-campeonato no mundial de cross-country na Alemanha, em 1976, Lopes passou por uma fase de lesões. Foram cinco anos de angústias, entre fisioterapias, abandonos de treinos e desistências de provas.

“Nesse período negro, o que mais me custou foi não poder participar nos Jogos Olímpicos de Moscou. Se não fossem as lesões, não teria boicotado as Olimpíadas. Sempre achei que política e desporto não podiam ser misturados”, disse o atleta na época.

Em 1979, algumas pessoas já apressavam a aposentadoria do atleta. “Me senti humilhado com as palavras de alguns senhores que me preparavam o funeral e me consideravam uma espécie de velho inútil” disse o atleta, então com 32 anos.

A recuperação veio através de tratamentos com acupuntura, realizado pelo mestre especialista, conhecido por Koboyashy, em portugal. “Quando ninguém dava mais nada por mim, ele me curou e me deu confiança para o futuro”.

O retorno às pistas
Em 1982, nos Bislett Games, em Oslo, Lopes reapareceu recuperado. Em uma corrida que o norte-americano Alberto Salazar assumia o ataque para quebrar o recorde europeu, Lopes transcendeu-se. Na metade da prova os atletas conseguiram dez segundos de vantagem em relação à marca histórica. Aos 8.000 m metros ocupavam as primeiras posições, Lopes, Salazar e o belga Alex Hagelsteens. Nos 200 metros finais Lopes apertou o passo, garantiu a vitória e cravou um novo recorde mundial com o tempo de 27min24s39.

O próprio Carlos Lopes ficou impressionado com o desempenho. “Não contava com o recorde europeu dos 10.000 m. Pela primeira vez na minha carreira tive um comboio até 250 metros da meta. Foi tudo simples. O atletismo não tem segredos. Quem tem força anda, quem não tem…”

Em Abril de 1983, em Roterdã, Holanda, a disputa pela vitória da maratona ficou entre Lopes, o australiano Robert de Castella e, novamente, Salazar, que detinham as melhores marcas mundiais. Aos 36 km de prova Salazar cedeu e, aos 38 Km só restava Lopes e Castella. Por dois segundos, o sprint do australiano definiu a vitória, mas foi de Lopes a marca do novo recorde europeu, com o tempo de 2h08min39s.

Do acidente ao pódio
Faltava pouco mais de uma semana para a viagem dos atletas para as Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, quando, no decorrer de um treino, Carlos Lopes foi atropelado por um carro. Poderia ter sido o fim de um sonho: “Fui aos ares, caí e levei algum tempo para me levantar com medo de pensar que já não iria a Los Angeles. Me ergui e a primeira coisa que fiz foi tentar correr. Corri… o sonho podia continuar”, relatou o atleta após o acidente.
A disputa da maratona aconteceu sob um forte sol, no dia 12 de agosto. A alta temperatura começou a desgastar Salazar, que cedeu no quilômetro 19. Castela agüentou até o 34° km. De acordo com o Comitê Olímpico Internacional, Lopes correu os próximos 5 km em 14min33s. A quatro quilômetros da chegada, Lopes abriu um ataque rumo ao sonho. Entrou no estádio com 200 metros de vantagem, em passada firme, com o sorriso nos lábios. Os braços erguidos ao céu. Lopes conquistava para Portugal, a primeira medalha olímpica de ouro, com o tempo de 2h09min21, recorde olímpico que durou até Pequim 2008, batido pelo queniano Samuel W
anjiru, com o tempo de 2h06min32s
“Decidi não me preocupar antes dos 37 Km, a partir daí sabia que tinha de dar forte. Foi o que fiz”, resumiu o atleta.

Bicampeão na São Silvestre
A vitória de Lopes na São Silvestre de 1982 foi marcada pela superação, afinal ele estava longe do favoritismo e muitas pessoas já consideravam a carreira do português, então com 35 anos, acabada no cenário internacional.

Assim como no ano anterior, o brasileiro José João da Silva saiu na frente, com o colombiano Victor Mora pressionando. No elevado Costa e Silva, a briga estava entre José João e o tanzaniano Zakaria Bary. Foi quando Lopes surgiu. Por 150 m, ele correu lado a lado com Zacaria para, finalmente, se distanciar na liderança com Mora em segundo. Forçando o ritmo, ele puxava a prova na Consolação quando sentiu uma fisgada na virilha.

Em entrevista ao jornal Gazeta Esportiva, após a competição daquele ano, Lopes relatou seu pensamento no momento da dor: “Não é uma contusão que vai me arrancar a vitória que eu espero há tantos anos.” O incentivo, no entanto, veio de um policial militar, a poucos metros da avenida Paulista. “Ele gritou ‘Não desista! Estamos quase no fim da Consolação, depois é a Paulista, uma linha reta. Vá em frente, não tem ninguém atrás de você’.”

O apoio moral fez com que a dor fosse isolada no cérebro até a chegada. “Se pudesse teria agradecido o policial naquele momento. Aquelas palavras me ajudaram”, afirmou o corredor depois da prova.
Após dois anos Lopes retornou ao Brasil, dessa vez acompanhado da mulher e dos dois filhos. Aos 37 anos, ele carregava o título de campeão olímpico da maratona e o favoritismo. Como nos anos anteriores, José João largou na frente e forçou o ritmo nos primeiros 5.000 m. Logo que Lopes percebeu o sacrifício que João fazia para manter a liderança, ele avançou rumo à primeira colocação. Naquele ano, a atleta portuguesa Rosa mota também pegou o pódio na categoria feminina.

A festa da comemoração do campeão foi familiar: um jantar com direito a vinho, bacalhau e frutos do mar. A comemoração durou até as quatro horas em um dos restaurantes típicos mais tradicionais da cidade.
Fonte: Arquivo Gazeta Esportiva

Ficha técnica
Nome: Carlos Alberto Sousa Lopes
Nascimento: 18 de fevereiro de 1947
Cidade natal: Viseu (Portugal)
Nacionalidade: Portuguesa
Esporte: Atletismo

Medalhas em Olimpíadas
Montreal, 1976 – Prata nos 10.000 m, com 27min45s17
Los Angeles, 1984 – Ouro na maratona, com 2h09min21 (recorde mundial)

Outros feitos da lenda
Campeonatos mundiais de Cross Country (3 medalhas de ouro em 1976, 1984 e 1985) e 2 medalhas de prata (em 1977 e 1983)
800 m: 1min56s5, em Barreiro, agosto de 1970
1.500 m: 3min41s4, em Lisboa, julho de 1982
3.000 m: 7min48s8, no Estádio Nacional, maio de 1976
5.000 m: 13min16s38, em Oslo, agosto de 1984
10.000 m: 27min17s48, Estocolmo, julho de 1984
20.000 m, 59min44s2, em Lisboa, agosto de 1975
Bateu o recorde pessoal nove vezes consecutivas.

Fonte: Revista O2 – Edição 43 – Novembro de 2006