Correr é mesmo democrático

Atualizado em 13 de abril de 2009
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Por Caio Barretto Riso, do Rio de Janeiro

Correr é apaixonante, como sabem os leitores da O2. O que talvez nem todos saibam é o que sentem aqueles que correm em equipe. A Equipe Rocinha, por exemplo, reúne corredores de todas as idades — o mais novo tem 13 anos; o mais velho, 67 —, que treinam quase diariamente nas areias de São Conrado, a praia mais próxima da comunidade. Todos os entrevistados, sem exceção, dizem que o grupo é uma extensão de suas próprias famílias.

Ivan Francisco da Silva, 67, o Seu Ivan, é corredor há 15 anos, motorista particular aposentado, atualmente “passeador de cachorro”, como ele define a nova profissão. Seu Ivan saiu de Campina Grande, na Paraíba, aos 14 anos, e veio morar com os pais, na Rocinha, onde vive até hoje. Dois anos atrás, o bem-humorado senhor viveu o momento mais triste de seu destino: a morte de sua filha, de 36 anos. A reviravolta só foi possível graças aos companheiros de equipe. “Eles ficaram o tempo todo ao meu lado. Se eu parasse de correr, iria ao fundo do poço. Eles não permitiram”, lembra o corredor, emocionado.

O começo de tudo
Seu Ivan é um dos 50 atletas da Equipe Rocinha, formada há quatro anos, quando o apoio da loja Sport Society e da New Balance foram oficializados. Enquanto a primeira fornece uniformes e inscrições gratuitas em provas de rua, a segunda proporciona tênis para os integrantes do grupo. Não raro, a equipe também tem suas viagens de corrida financiadas pelos patrocinadores. Mas, apesar dos quatro anos no atual modelo, a formação da Equipe Rocinha começou 15 anos atrás.

“As pessoas que são da comunidade sempre participavam da Corrida de São Sebastião, que era na Rocinha, hoje é no Aterro. E sempre nos encontrávamos correndo. Conversamos sobre montar uma equipe”, conta Antonio Carlos Ferreira da Silva, 34 anos, o Cacau, motorista de transporte alternativo. O grupo formado às pressas venceu a corrida daquele ano.

Cacau, que preside a Associação dos Corredores da Rocinha (nome oficial da equipe), não se lembra ao certo de quantas pessoas formaram aquele primeiro grupo — “éramos cinco ou seis na época” —, mas diverte-se ao recordar: “Para fazer o uniforme e pagar outras despesas, tínhamos de passar a caixinha todo mês. Cada um ajudava com o que podia”. Os treinamentos regulares começaram há cinco anos, quando o treinador Marcelo Vaz conheceu a equipe. Dois anos mais tarde, ele passou o bastão para Iazaldi Feitoza, 34, dono da vencedora Carioca Runners. Feitoza passa uma planilha mensal para cada atleta e divide o treino em três tipos de solo: areia, terra e asfalto.

Corredores do futuro
Crescer ainda mais: este é o sonho de todos da Equipe Rocinha. Um sonho que se torna, cada vez mais, realidade. Há dois anos a equipe criou o projeto Rocinha Correndo Para o Futuro, uma forma de incentivar jovens de 14 a 18 anos, moradores da comunidade, a entrarem no mundo do esporte. São, no total, dez adolescentes (dos quais sete são meninas), que recebem material esportivo, assessoria técnica e uma cesta básica mensal, contanto que frequentem a escola (e tirem boas notas) e percam, no máximo, três treinos por mês. Ou seja: quem quer ser corredor precisa ter a disciplina como aliada. Os jovens são selecionados na Corrida de Natal da Rocinha, uma prova para crianças a partir de 4 anos, organizada por membros da equipe, que este ano chegou à sua oitava edição, com cerca de 400 participantes.

Foi nessa prova, há seis anos, que surgiu Adailton Pereira da Silva, estudante de 19 anos. Com apenas 13 anos na ocasião, Silva venceu a distância de 800 metros. Mas, para entrar no projeto, o jovem de São Luis do Maranhão, que se mudou para o Rio de Janeiro com os pais há 11 anos em busca de uma vida melhor, precisou repetir o feito nos dois anos seguintes. Hoje ele faz parte do grupo adulto da Equipe Rocinha. “O engraçado é que eu não gostava de correr, mas gostei tanto das pessoas da equipe, todas sempre unidas, que passei a gostar de corrida também”, recorda Silva, que abre um grande sorriso ao contar que, hoje, sua família — cujo pai é pedreiro e a mãe, copeira — mora em casa própria e ainda possui um imóvel na terra natal. O sonho dele é chegar entre os dez primeiros da Meia-maratona do Rio de Janeiro.

O treinador da equipe, Iazaldi Feitoza, afirma que o projeto Rocinha Correndo Para o Futuro não tem como preocupação a formação de campeões, “embora muitos deles tenham potencial para isso”, diz o treinador. Para ele, o foco principal é “inserir o adolescente em uma atividade física e afastá-lo das coisas ruins que qualquer comunidade tem. Queremos que eles se tornem adultos conscientes dos seus direitos e deveres”. Feitoza sonha com a realização das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) na Rocinha, prometidas pelo governo federal, que permitiriam a ampliação do projeto. “Se for mesmo construída uma pista de atletismo na Rocinha, as crianças da comunidade, e não apenas os adolescentes, poderão participar também”, acredita Feitoza, já que as crianças não precisariam sair da Rocinha para treinar.

O amor, sempre ele
Se depender de Andressa de Mesquita Nascimento, 18, que entrou no projeto este ano, Silva vai chegar muito mais longe. Eles namoram há quatro meses e se conheceram, adivinhe, nos treinos da equipe. Foi, a exemplo de tantos outros casais, a corrida que os uniu. “Não vou aos treinos por obrigação, nem por causa do namorado (risos). Fico contando as horas, querendo que o tempo passe logo. São dois treinos por semana (para o projeto), mas gosto tanto que vou todos os dias”, diz a estudante, entusiasmada com sua evolução. Ela completou sua primeira prova de 5 km em 27min30s; na última, o tempo caiu para 24min14s. Como Adailton Pereira da Silva, estudante de 19 anos (leia mais sobre ele na matéria da O2 de abril, número 72), ela pretende se formar em Educação Física. “Aí vamos dar aula juntos”, sonha a dedicada Andressa.

O afeto que os une
Histórias de amizade, sonhos e superação: são os laços que unem a Equipe Rocinha. Não é raro eles se encontrarem aos domingos de manhã, na praia de São Conrado, para tomarem café da manhã juntos, com a presença de suas famílias. Na noite de Natal, após a meia-noite, os corredores se reuniram para celebrar a data. Poucas semanas antes, o churrasco na casa de Cacau foi o motivo de celebração. Um se sente responsável pelo outro, ninguém passa despercebido quando falta a um treino. Ivan Francisco da Silva, 67, o Seu Ivan, bem o sabe. “Quando perdi minha filha, todos da equipe me abraçaram e não me deixaram desistir. Graças a eles, sou este vovô saudável da Rocinha e enquanto meu coração estiver batendo, estarei correndo”, diz. Este deve ser, afinal, o verdadeiro significado de equipe.

Um “coroa sinistro”
Do grupo inicial, quem também continua na equipe é Edimicio Batista Ramos, 55, que é “cria” da Rocinha — isto é, nasceu na comunidade —, como ele mesmo diz. Edimicio alimenta, pela corrida, um sentimento de gratidão: foi por meio dela que o eletricista deu um basta no sofrimento causado pelo alcoolismo. A ausência da substância melhorou não apenas seu desempenho na corrida, mas deu um novo sentido à sua vida. “Meu apelido aqui é hippie, pois comigo é paz e amor. Corro a cidade inteira, vou até o Leme, a Vista Chinesa, as Paineiras, e ainda moro no lugar mais bonito da favela, lá em cima, de frente para o mar”, diz Ramos, sorrindo. Na Rocinha, o eletricista, que acorda às 5h para correr, é chamado, pelos mais jovens, de “coroa sinistro”.

A favela corre
A Rocinha já realiza, há oito anos, a sua Corrida de Natal para crianças, mas ainda são raras as iniciativas semelhantes pelo Brasil. Por essa razão, 2008 talvez seja um marco na mudança desse quadro. O Circuito Popular de Corridas Caixa, em sua primeira edição, atraiu cerca de mil corredores nas três etapas realizadas.

O Circuito passou pelas comunidades de Paraisópolis, em São Paulo, no dia 13 de novembro, Heliópolis, na mesma cidade, no dia 7 de dezembro, e terminou em Brasília, no Recanto das Emas, no dia 14 do último mês do ano. A organização do Circuito procurou se aproximar, o máximo possível, do alto nível das provas de rua patrocinadas por grandes marcas. Para o corredor Juracy de Almeida, 30, morador de Paraisópolis, o objetivo foi alcançado.

“De zero a dez, dou nota dez. A organização foi excelente, serviu para ativar o atletismo na nossa comunidade, que nunca viveu um momento parecido com esse. Já encontramos alguns corredores que vão correr a São Silvestre conosco. O objetivo é reforçar isso”, afirma Almeida. Ele não pôde correr os 4 quilômetros da prova, pois sofreu um pequeno estiramento enquanto ajudava o pai a construir sua casa, “mas ano que vem estarei pronto para correr, não perderei pela segunda vez a oportunidade de disputar uma prova no lugar onde tudo começou para mim”, diz.

Os principais campeões do atletismo brasileiro — e da maioria dos esportes, na verdade — têm suas raízes em comunidades como a de Paraisópolis, Heliópolis e Recanto das Emas. Com pouco ou nenhum incentivo, foi necessária a superação de uma série de obstáculos para que eles se profissionalizassem como atletas. O Circuito Popular de Corridas Caixa pode ser um modelo inspirador de outras iniciativas que, talvez, aumentem as chances de um sonho de criança se tornar a realidade de um adulto. “Precisamos acreditar que vale a pena investir nesse caminho. Vi as crianças se manifestando, aqui na comunidade, os olhinhos brilhando durante a corrida. Essa é a peça-chave: acreditar nessas crianças. Do contrário, perderemos campeões”, afirma Almeida. Alguns, certamente, já foram perdidos; para muitos, ainda há esperança.