Até hoje só ela conseguiu

Atualizado em 09 de junho de 2009
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Por Nanna Pretto

Derartu Tulu nasceu em 1972 na vila de Bokoji, região de Arsi, na Etiópia Central. Era a sétima de uma família com dez crianças. Com os pais fazendeiros, tornou-se um costume da criançada ajudar em casa e na terra. “Tive uma infância muito boa. Nós éramos muitos, mas eu era feliz”, disse a atleta, hoje com 34 anos, mãe de seis filhos (quatro adotados), em entrevista exclusiva à O2. Durante a época do ensino fundamental, Derartu se destacou como jóquei nas competições de corrida a cavalo. “A região em que cresci é famosa por competições com cavalos. Derrotei muitos meninos na minha adolescência”, lembra. Posteriormente, as primeiras vitórias na distância dos 800 m começaram a traçar o caminho para a carreira da atleta.

A etíope conheceu a fama e entrou para a história olímpica após a emocionante vitória nos 10.000 m nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992. Mas a primeira vitória significante de Derartu foi em uma disputa pelos 400 m na escola, quando ela desbancou um atleta masculino, até então vencedor na categoria. “Naquela época eu corrida por diversão. Disputava e ganhava de meninos da minha idade. Mas eu fazia aquilo apenas por lazer”, afirma.

Derartu não imaginava que era uma corredora fora do normal –comparando-a com os colegas da escola– até completar 16 anos. Aos 17, em 1989, entrou para Polícia Militar da Etiópia e completou a primeira prova internacional de 6 km de cross-country, na Noruega, ficando na 23ª posição. Anos depois, no entanto, ela participou da mesma prova e conseguiu a medalha de ouro, ganhando reconhecimento internacional nos anos 90.

“Na época da escola, eu corria orientada por uma professora de educação física, não por uma técnica de corrida”, explica Derartu. Quando começou a treinar profissionalmente para participar dos Jogos Olímpicos, a assídua atleta comparecia a todos os treinos que eram passados para ela, com um volume médio de duas horas por dia. “Não sei se tive um treinamento especial, porque eu não sabia o que era um treino específico para uma Olimpíada. Mas eu fazia tudo o que o técnico mandava”, afirma.

Corram, meninas, corram!
Da segunda prova realizada na Noruega, a atleta se recorda de um momento engraçado da carreira. Na véspera da competição que Derartu conquistaria a medalha de ouro, o técnico orientou o grupo de corredoras etíopes que corressem todas juntas e que, em equipe, conquistassem um bom resultado para o país. No dia seguinte, Derartu liderava a prova com mais uma companheira, enquanto três outras corredoras do grupo estavam para trás. “Eu parei no meio da corrida e comecei a berrar, chamando as outras meninas do grupo.” O técnico, conta Derartu, que naquele instante estava posicionado ao lado da atleta, gritava ainda mais para que ela esquecesse as outras e seguisse em frente. “Quando terminamos a prova, cheguei no técnico e, séria, perguntei: “o senhor não disse que deveríamos correr em grupo e ganhar em grupo?” A equipe de meninas etíopes não se conteve e caiu na gargalhada.

Ouro em Barcelona
A vitória nos 10.000 m dos Jogos Olímpicos de Barcelona colocou Derartu nos livros de história como a primeira mulher negra a conquistar uma medalha de ouro para a África nas Olimpíadas.

Na disputa final, a sul-africana Elana Meyer diminuiu o ritmo por volta dos 6.000 m forçando uma ultrapassagem de Derartu, assim a rival manteria um ritmo forte da prova. Se Derartu passasse Elana, o desgaste físico do esforço poderia acabar com as energias dela. Mas a corredora etíope não cedeu e manteve o ritmo. Finalmente, na volta final, ela conquistou a primeira posição e venceu a prova por 30 metros de diferença. Após cruzar a linha de chegada, a campeã esperou por Elana, a sul-africana branca. De mãos dadas elas deram a volta olímpica simbolizando a esperança pela paz no conflito racial na África do Sul.

Após o feito, Derartu continuou vencendo provas e levando medalhas de ouro, prata e bronze ao país. Em sua ativa carreira, de 1990 a 2004, Derartu conquistou
dez medalhas de ouro, duas de prata e uma de bronze, nas principais competições internacionais, como os Jogos Olímpicos, campeonatos mundiais e maratonas internacionais.

Vitória inesquecível
Apesar do incrível feito olímpico, a vitória que ficou marcada na carreira de Derartu, segundo ela mesma relata, foi a conquista da medalha de ouro, em 1995, no Campeonato Mundial de Cross-Country, na Inglaterra. “Depois de uma longa e cansativa viagem chegamos em Durham, ao norte de Londres, às 3h da manhã. Após amanhecer, consegui a medalha de ouro.”

Segundo ouro olímpico
Derartu voltou às Olimpíadas no ano seguinte, porém terminou em quarto lugar. Mas a carreira da atleta seguiu adiante até 1998, quando interrompeu os treinos em função do nascimento da sua primeira filha, Tsion, hoje com nove anos. Após dois meses dedicando-se apenas ao bebê, a mãe corredora teve de voltar aos treinos para assegurar um bom desempenho nas Olimpíadas que aconteceria em 2000.

Nos Jogos Olímpicos de Sidney, Derartu ganhou novamente os 10.000 m em uma fácil vitória contra a colega de equipe Gate Wami. A conquista teve um gosto muito mais especial do que a primeira, de Barcelona. Em uma corrida de tirar o fôlego, as seis primeiras colocadas quebraram o recorde olímpico na categoria feminina dos 10.000 m. Com 30min17s49, Derartu conquistou o primeiro lugar e tal triunfo a consagrou como a primeira mulher a ganhar duas medalhas olímpicas de ouro em distâncias acima de 1.500 m. “A acredito que fui uma das pioneiras a inspirar jovens corredoras a se tornarem atletas. E tenho muito orgulho disso.”

Nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, ela ficou com o bronze nos 10.000 m, atrás da chinesa Huina Xing, medalha de ouro e da compatriota Ejegayehu Dibaba, que conquistou a prata.

Vitória na São Silvestre
Em 1994, Derartu esteve no Brasil para participar da 70ª São Silvestre. Aos 23 anos, a etíope conquistou o primeiro lugar em uma das mais tradicionais provas brasileiras, já com 15 km naquele ano.

A atleta começou a confirmar seu favoritismo na metade da corrida. Até então, a brasileira Solange Cordeiro de Souza, da Funilense de São Paulo, era a líder isolada. Na subida da avenida Brigadeiro Luiz Antônio, a corredora da Etiópia acelerou e conquistou a vitória com o tempo de 51min17. Na época, Derartu trabalhava como guarda de presídio, na cidade de Adis Abeba, na Etiópia.

Apesar de ter adorado as pessoas, o acolhimento, a torcida e as tradições brasileiras, o coração de Derartu bateu mesmo pelo futebol. “Eu amo ver o Ronaldo jogando. Ele é meu favorito”, explica a corredora que tenta assistir aos jogos e se diz grande apoiadora da Seleção Brasileira de Futebol. “Quando o Brasil joga na Copa do Mundo eu assisto a todos os jogos e visto o uniforme da seleção”, afirma.

Pausa para a família
Em 2006, Derartu se afastou das pistas em função do nascimento de Ruth, a segunda filha biológica. Atualmente, a família, que sempre esteve presente na vida da atleta, tornou-se prioridade. “Não me aposentei, apenas me afastei temporariamente. Quero voltar a correr e conseguir bons tempos. Mas agora é difícil prever quando eu retornarei às competições.”

Derartu sempre teve uma ligação muito forte com os pais e irmãos. Quando perdeu uma das irmãs, a medalhista não hesitou em adotar os três sobrinhos. Ela também tirou do abandono mais uma criança, adotando-a e tornando-se mãe de seis crianças. “Quando estou longe de casa, eu sinto muita falta deles. Acredito que meus filhos são felizes e orgulhosos por ter uma ‘mãe olímpica’.”

Diferentemente do Brasil, a adoção na Etiópia não é difícil nem burocrática, diz a atleta. Por conta disso, Derartu afirma que tem vontade de tirar das ruas muitas crianças. “É possível ser mãe e corredora desde que você ten
ha amor no coração. Quero adotar outras crianças e ter uma grande família”, diz a corredora casada com o etíope Mekonnen Atsege, 37.

A corrida e o trabalho –Derartu faz parte da corporação militar, mas não atua mais como policial– deram à atleta, uma confortável vida. “Tenho alguns negócios e freqüentemente faço doação para causas especiais e pessoas vítimas de desastres em meu país.”

Ela não se considera uma mulher viciada em corrida. “É uma grande paixão”, resume. Ter incentivado muitas mulheres a iniciarem a corrida e servido como exemplo para as mães corredoras retornarem ao esporte é, entretanto, o grande orgulho da corredora etíope. “Não existe uma corrida que eu tenha me arrependido de fazer. E nenhuma decisão que eu tenha tomado, com
relação à corrida, que eu ache que foi errada.”

::IDENTIDADE:

Nome: Derartu Tulu
Nascimento: 21 de março de 1972
Cidade natal: Bokoji (Etiópia)
Nacionalidade: Etíope
Esporte: Atletismo
Olimpíadas:

Barcelona, 1992 (ouro nos 10.000 m)
Atlanta, 1996
Sidney, 2000 (ouro nos 10.000 m)
Atenas, 2004 (bronze nos 10.000 m)

Fonte: Revista O2 – Edição 48 – Abril de 2007